
Miguel passava pelos corredores verdes e incólumes do hospital-escola, sua camisa listrada e o cinto marrom enrolado abaixo da cintura, enquanto seu paciente esperava sozinho na sala, encarando a parede no ponto em que ela é interrompida pela porta, maçaneta ao lado. Quando ele se sentou na cadeira, as costas para a mesma porta que interrompia a parede, deixou os braços sobre a mesa, com a pasta ao lado. Houve um momento de silêncio após o “olá” antes que ele perguntasse:
– Como passou, Tarso?
O menino lhe olhava com um quê inexpressivo. Levou um tempo ainda para que o médico notasse a ausência das sobrancelhas no garoto. Quando notou, permaneceu com seus braços postos à mesa, sem grandes espantos. Evitava os olhares do paciente distraindo-se com os papéis na pasta.
– Bem e você?
Miguel não respondeu à pergunta. Ambos sabiam do que se tratava.
– Você perdeu a última consulta.
– Não pude vir.
– O que houve?
– Imprevisto.
– Eu soube da sua passagem pelo pronto socorro.
– Hm.
O médico mantém o silêncio. O menino entrega.
– Eu tive de ficar internado.
– Por que?
– Você não sabe?
– Eu quero que você me conte.
Era difícil para o psiquiatra recuperar as palavras do adolescente. Com a traqueostomia presa de cada lado por um cordão puído, o catarro verde pulando e escorrendo pelos lados abaixo de seu pescoço, seu paciente falava, mas os grunhidos finos não davam para uma voz e quase pioravam a compreensão dos movimentos labiais exagerados do garoto que apelavam ao seu entendimento.
– Na sexta eu saí com uns amigos. Como minha mãe me deixou trancado, eu tive que pular o muro. Pedi para eles me buscarem num mercadinho a umas quadras de casa e fomos. Chegando lá a gente tomou um chá de cogumelo, eu tava com a minha identidade falsa para entrar numa festa, mas acabou que não entramos por conta do que aconteceu.
– O que aconteceu?
– Eu não sei… Minha cabeça começou a virar sozinha e é como se todo meu corpo tivesse endurecido e se contorcendo. Quando eu dei por mim, estavam me levantando do chão, disseram que eu convulsionei… Depois disso me trouxeram aqui pro hospital. Tinha algum médico lá, ficou gritando com a gente, todo mundo dentro do pronto socorro e eu entreguei a identidade errada… Me deram alguma coisa na veia e eu voltei ao normal.
– Entendi. E aí?
– Aí eu voltei para casa.
O doutor clicava a caneta contra a mesa de madeira enquanto apoiava o dorso no encosto da cadeira giratória.
– E por que você fez isso?
Tarso esboçou um gesto no lugar onde deveriam estar as sobrancelhas.
– Eu não sei… Eu só queria sair de casa.
– E depois?
– Aí eles me deixaram em casa. No outro dia encontrei os meus primos e tomei um LSD. Tomei de testa mesmo. Lembro do mundo inteiro tremendo verde. Meus primos disseram que eu surtei, repetindo o nome de uma prima minha “Marília! Marília!” e convulsionei de novo. Dessa vez eu já acordei no hospital da minha cidade. Como lá sabiam da minha tentativa de suicídio, não queriam me liberar antes de eu ver um psiquiatra. Acabei ficando duas noites lá esperando. Ele passou, conversou comigo, deu um termo pra minha mãe assinar e eu saí.
– E como tá a sua mãe?
– Tá aí fora.
– Que bom que ela pode vir hoje. Que bom que vocês dois puderam, ficamos preocupados com a sua falta e a passagem no pronto socorro.
Tarso assentiu sustentando o olhar.
– E você tem tomado os remédios?
– Sim. O escitalopram e a risperidona.
– Tem ajudado?
– Minha mãe gosta.
– E você?
– Hm – deu de ombros.
O residente descolou as costas da cadeira, de modo que essa produziu um pequeno grasnar enquanto ele se projetava sobre os cotovelos apoiando o peso do seu tronco sobre a mesa.
– E do que você gosta, Tarso? O que te dá prazer?
– Eu não sei… Eu gosto de sexo, usar drogas, relacionamentos intensos… Eu gosto de brigas e desafiar a morte. É assim que eu sou.
– Mas nisso não há nada de novo, você está buscando pela dopamina. Todos esses comportamentos que você falou são comportamentos de alta liberação dopaminérgica. É por isso que você é tão impulsivo, você quer a dopamina.
– Mas eu não sou uma pessoa impulsiva!
Uma gota de catarro voou pelo buraco no pescoço de Tarso, enquanto o residente observava o espaço sobre os seus olhos.
– Você quer me dizer que você se jogou embriagado do telhado da sua casa e você não é uma pessoa impulsiva?
– Eu calculei. Eu planejei. Nove metros era o suficiente para eu me matar. Eu pesquisei, muita gente morre com muito menos! Eu deveria morrer.
– Você ainda pensa em se matar?
– Só estou esperando a cirurgia tirar a traqueostomia do meu pescoço para eu me enforcar.
Miguel assentiu levemente enquanto seus dedos cruzados cobriam a barba e os cotovelos sustentavam as mãos firmes nas quais apoiava-se o nariz. Nesse ínterim, acabou por desviar o olhar levemente ao relógio na parede contralateral em que o ponteiro vermelho marcava os segundos um a um.
– E em que momento você tirou as sobrancelhas?
– Depois que eu voltei da internação para casa.
– E por quê?
– Eu queria ficar com o olhar inexpressivo. O que você achou?
– O que eu achei… Eu acho que o motivo de você raspar as sobrancelhas é que você quer chamar atenção, Tarso. É isso o que eu acho.
Tear down the wall.
– Hm.
O psiquiatra passa a juntar os papéis na pasta e a fazer breves anotações com a caneta azul em seu prontuário. Depois de juntar as pontas do papelão amarronzado, se dirige ao paciente e pergunta:
– Algo mais?
Tarso inclina-se aproximando o corpo da mesa e apoiando os braços sobre a madeira paralela ao chão.
– O psiquiatra que conversou comigo na internação me falou que não existia diferença entre homossexualidade e bissexualidade, que o comportamento homossexual era um só. O que você acha?
– Não, não se fala em comportamento homossexual, assim como não se fala em comportamento heterossexual. Mas o que interessa a minha opinião sobre a homossexualidade? Eu não entendi o porquê de você estar me perguntando isso. Na última consulta você me acusou de estar preocupado com o seu diagnóstico, mas eu sequer preenchi algo nas folhas que pediam o seu diagnóstico. Aí eu percebi que é você quem queria saber o seu diagnóstico, Tarso. Sabe o que eu acho? O que eu acho é que você fala disso pra evitar falar do que é difícil, Tarso, porque dói. Eu acho que quando você chega na terapia você fala de um livro que você leu ou de um filme que você viu para não encarar o que dói.
– Você acha?
– Eu acho. – Dr. Miguel balança a cabeça para cima e para baixo lentamente com os olhos semicerrados. O dorso acompanha o movimento ritmado através do pescoço.
– Tá.
Agora com os papéis entre as bordas da pasta na mão, Miguel se levanta ao mesmo tempo em que avisa:
Eu vou conversar com o meu chefe. Enquanto isso você pode chamar a sua mãe.
A mãe e o filho esperam. Não se olham, nem dão as mãos. Se alguma palavra parte dela, é metade de uma censura. O médico volta. Traz entre as mãos calorosas três caixas de carbonato de lítio 450 mg. Senta-se e se dirige ao garoto:
Aqui está Tarso! Um comprimido desse, três vezes ao dia. Esse remédio é muito bom, ele vai te ajudar! – passa as caixas pela mesa para as mãos do rapaz – E também as receitas para os outros remédios. Pode tomar tudo direitinho e eu te vejo em um mês. Pode deixar agendado para esse dia. Tchau! Tchau! Tudo de bom para vocês, até a próxima consulta.