
No dia 8 de abril de 2025 foi promulgada a Resolução CFM nº 2.427/2025, publicada no Diário Oficial da União em 16 de abril de 2025, que “revisa os critérios éticos e técnicos para o atendimento a pessoas com incongruência e/ou disforia de gênero e dá outras providências”, revogando a Resolução 2.265/2019 do próprio Conselho Federal de Medicina (CFM).
Esta nova resolução introduz mudanças significativas no tratamento de saúde de pessoas com incongruência de gênero, especialmente adolescentes. Entre as principais alterações, destacam-se: a vedação da prescrição de bloqueadores hormonais para tratamento de incongruência/disforia de gênero em crianças e adolescentes (art. 5º), a restrição da terapia hormonal cruzada apenas para maiores de 18 anos (art. 6º, §2º), e a proibição de procedimentos cirúrgicos de afirmação de gênero antes dos 18 anos, elevando para 21 anos a idade mínima para procedimentos que impliquem potencial efeito esterilizador (art. 7º, §3º).
Destaca-se que a intervenção hormonal para crianças nunca foi um procedimento adotado pelos serviços especializados.
Além disso, de acordo com o Art. 6°, sobre a terapia hormonal cruzada, o paciente adulto que optar pela mesma deverá iniciar avaliação médica, com ênfase em acompanhamento psiquiátrico e endocrinológico por, no mínimo, 1 (um) ano antes do início da terapia hormonal, conforme Planejamento Terapêutico Singular (art. 6, § 3°).
As justificativas apresentadas pelo CFM, amplamente divulgadas, extrapolam suas prerrogativas técnicas e não se sustentam frente à atual literatura científica de qualidade sobre o tema.
A proibição total do uso de bloqueadores hormonais em menores de 18 anos, para acompanhamento de incongruência de gênero em adolescentes, desconsidera evidências científicas consolidadas que apontam seus benefícios na redução da disforia de gênero e do sofrimento psíquico. Estudos como o de Turban et al. (2020) demonstram que adolescentes trans, que tiveram acesso à supressão puberal, apresentaram risco significativamente menor de ideação suicida na idade adulta. Quando utilizados em contextos clínicos apropriados, os bloqueadores apresentam perfil de segurança aceitável e contribuem para o bem-estar emocional de jovens transgêneros, de acordo com revisão conduzida por Herrera Jerez et al. (2024).
Além disso, impedir o uso desses medicamentos em qualquer circunstância fora do tratamento de puberdade precoce inviabiliza projetos de pesquisa clínica e compromete o desenvolvimento científico nacional.
Quanto à vedação da hormonização cruzada em menores de 18 anos, não há respaldo em consensos internacionais como os da Endocrine Society (2017) e da World Professional Association for Transgender Health (2022), que preconizam a possibilidade de início criterioso e individualizado da terapia hormonal por volta dos 16 anos, com base em avaliação clínica e acompanhamento multiprofissional.
Estudos longitudinais como o de Tordoff et al. (2022) e evidências apresentadas por Tangpricha et al. (2019) demonstram que o acesso precoce à hormonização cruzada está associado a melhor saúde mental e menor incidência de depressão, ansiedade e automutilação em adolescentes trans e não-binários.
Ao proibir o uso de bloqueadores e hormonioterapia em qualquer cenário clínico antes dos 18 anos, a resolução do CFM desconsidera que, no Brasil, o uso desses recursos vinha sendo conduzido sob rigorosos protocolos de pesquisa e conduzido com aval dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP/Conep) com aprovação ética. Como demonstrado por Saadeh & Scivoletto (2024), os projetos dos centros de pesquisa universitários nacionais seguem critérios clínicos e científicos muito mais exigentes que os observados em sistemas de saúde como os do Canadá, EUA ou Escandinávia.
A resolução contraria o direito constitucional à saúde e a diretriz da autonomia progressiva do adolescente reconhecida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e por diretrizes bioéticas internacionais. Também esvazia a função dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP/Conep), que têm a prerrogativa de avaliar a segurança e adequação de estudos com bloqueadores e hormônios em adolescentes.
A Resolução representa um retrocesso do ponto de vista da saúde, seja no campo técnico, clínico, ético e jurídico. Ignora o consenso científico internacional, desconsidera experiências clínicas nacionais exitosas e compromete a saúde de uma população altamente vulnerável. A resolução também cria um paradoxo: reconhece a falta de evidências e, ao mesmo tempo, proíbe que elas sejam pesquisadas e reveladas.
Fontes de informações
- Resolução 2.265/2019 do Conselho Federal de Medicina.
- Resolução nº 2.427/2025 do Conselho Federal de Medicina.
- Turban JL, King D, Carswell JM, Keuroghlian AS. (2020). Pubertal Suppression for Transgender Youth and Risk of Suicidal Ideation. Pediatrics, 145(2), e20191725.
- Herrera Jerez MJ, Rodríguez-Mateos A, Rodríguez-García M, et al. (2024). Use of Hormone Blockers in Transgender Teenagers: A Scoping Review. Nursing Reports, 14, 4109–4118.
- Hembree WC, Cohen-Kettenis PT, Gooren L, et al. (2017). Endocrine Treatment of Gender-Dysphoric/Gender-Incongruent Persons: An Endocrine Society Clinical Practice Guideline. Journal of Clinical Endocrinology & Metabolism, 102(11), 3869–3903.
- World Professional Association for Transgender Health (WPATH). (2022). Standards of Care for the Health of Transgender and Gender Diverse People, Version 8.
- Tordoff DM, Wanta JW, Collin A, Stepney C, Inwards-Breland DJ, Ahrens K. (2022). Mental Health Outcomes in Transgender and Nonbinary Youths Receiving Gender-Affirming Care. JAMA Network Open, 5(2): e220978.
- Tangpricha V, Safer JD. (2019). Transgender Medicine: Best Practices and Clinical Care. Endocrinology and Metabolism Clinics of North America, 48(2), 389–402.
- Saadeh A, Scivoletto S. (2024). Incongruência de Gênero: infância, adolescência e fase adulta da vida. Manole.
Texto Resposta (Nota) dos Ambulatórios (Especializados em Assistência Multidisciplinar à Saúde de Crianças e Adolescentes Transgêneras), envolvidos em pesquisa com bloqueadores de puberdade (e Terapia Hormonal de Transição de Gênero) na população trans (em menores de 18 anos), ao Conselho Federal de Medicina (e à Sociedade), redigido pela equipe do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Sexualidade (Amtigos) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e do qual o Ambulatório de Gênero e Sexualidade (Ambgen) do Hospital das Clínicas da Unicamp é, em meu nome, signatário.