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+ Ensino Ano 2025, Volume 13, nº 4: Novas tecnologias Boletim FCM (ISSN: 2595-9050)

Uso da Simulação no Ensino Médico: Uma Ferramenta Contemporânea para o Desenvolvimento de Habilidades Técnicas e Não Técnicas

“Nem toda situação pode ser prevista ou antecipada. Não existe check list pra tudo”

Chesley B. Sullenberger

A simulação em saúde é entendida como um conjunto de condições que busca representar, de maneira autêntica, um paciente, um procedimento ou uma situação clínica, permitindo ao estudante aprender em um ambiente seguro e controlado. Diferente do aprendizado puramente teórico ou do modelo tradicional “see one, do one, teach one”, a simulação proporciona experiências práticas estruturadas e repetíveis, garantindo que o estudante desenvolva competências de forma progressiva antes do contato direto com o paciente. Essa abordagem está alinhada ao conceito de aprendizado experiencial de Kolb, no qual o conhecimento se constrói por meio de ciclos de experiência, reflexão, conceitualização e aplicação.

Historicamente, o uso da simulação em saúde remonta a práticas muito antigas. Na China do século X, por exemplo, modelos anatômicos de bronze foram utilizados no ensino de acupuntura, permitindo ao aprendiz treinar a colocação correta das agulhas e recebendo feedback imediato. Ao longo dos séculos, bonecos de treinamento para partos, modelos anatômicos de cera e simuladores rudimentares foram desenvolvidos para o ensino de habilidades específicas. Na década de 1940, Asmund Lærdal, fundador da empresa norueguesa Lærdal, desenvolveu o Resusci-Anne em parceria com anestesistas, tornando-se um marco para o ensino sistemático da ressuscitação cardiopulmonar. Posteriormente, na década de 1960, surgiram os primeiros simuladores de pacientes de alta complexidade, como o Sim One, desenvolvido por Abrahamson e Denson. Embora pioneiro, o alto custo de produção limitou sua disseminação, e apenas na década de 1980 houve uma retomada consistente com o desenvolvimento de simuladores mais acessíveis em Stanford e na Universidade da Flórida, que abriram caminho para os equipamentos de média e alta fidelidade utilizados atualmente.

O uso da simulação ganhou força a partir do final do século XX, quando mudanças significativas na educação médica começaram a questionar o modelo tradicional de ensino. O crescimento exponencial do conhecimento médico e a necessidade de integrar teoria e prática em currículos já saturados levaram à adoção de metodologias ativas de aprendizagem, como a problematização, a aprendizagem baseada em problemas (PBL) e a simulação clínica. A simulação passou a ser considerada não apenas um recurso complementar, mas um componente central no desenvolvimento de competências cognitivas, técnicas e comportamentais. No Brasil, embora cursos de suporte avançado de vida como o ATLS e o ACLS já utilizassem simulação desde os anos 1990, sua integração curricular só se consolidou a partir dos anos 2000, com o advento do Exame Clínico Estruturado Objetivo (OSCE) e a inclusão explícita da simulação nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) de 2014.

Um marco importante para a adoção da simulação foi a publicação, pela Organização Mundial da Saúde em 2009, do conceito de segurança do paciente como prioridade global. Esse movimento expôs as fragilidades do modelo tradicional de ensino baseado na observação e prática direta em pacientes, evidenciando os riscos de eventos adversos, atrasos no atendimento e erros técnicos cometidos por aprendizes em fase inicial. Assim, a simulação tornou-se não apenas uma ferramenta educacional, mas também uma exigência ética para reduzir danos e aprimorar a qualidade do cuidado. Esse cenário impulsionou universidades e hospitais a investir na criação de centros de simulação, capacitação de instrutores e integração de cenários simulados à grade curricular.

Grupo de estudantes e instrutores de jaleco realizando simulação de atendimento em leito hospitalar, observados através de uma janela de vidro a partir da sala de controle. Ao fundo, equipamentos médicos e monitores
Laboratório atualmente

Na Unicamp, o Centro de Simulação da FCM foi inaugurado em 2009, pela equipe da Pediatria. Atualmente, quase todas as disciplinas de graduação tem inserção na simulação, e a partir da Reforma Curricular os anos iniciais do curso também contam com disciplinas eminentemente práticas.

A área conta com uma ampla estrutura que inclui sala de imagens, arenas, sala de simulação de alta fidelidade e sala de simulação de atendimento.

A sala de simulação de alta fidelidade é composta por duas salas de simulação e uma de debriefing. Esses espaços são caracterizados como salas de emergência adulto e pediátrica, com simuladores de alta fidelidade. Incluem equipamentos de áudio e vídeo que permitem gravação e reprodução das atividades. Contam ainda com sala de controle com espelhamento unidirecional para observação dos facilitadores, sem contato direto com os estudantes.

A sala de simulação de atendimento apresenta uma estrutura semelhante a um consultório médico, nos mesmos moldes de atividade, com sala de comando, áudio e vídeo. Nessas salas são desenvolvidas as atividades de simulação voltadas às habilidades cognitivas e comportamentais, principalmente para o desenvolvimento do raciocínio clínico.

Flávia Zanchetta, Andrea Fraga e Nathalia Bezerra./ Foto: Marcelo Oliveira
Flávia Zanchetta, Andrea Fraga e Nathalia Bezerra./ Foto: Marcelo Oliveira

Nas arenas, as atividades realizadas são principalmente para o desenvolvimento de habilidades técnicas com simuladores de baixa e média fidelidade. A estrutura possibilita ainda a elaboração de estações práticas, de acordo com o método Objective Structured Clinical Examination (OSCE).

Além do ensino, também foram realizadas mais de trinta produções científicas entre artigos, dissertações de mestrado e teses de doutorado. Capacitar alunos para participação de Projetos de Extensão também faz parte do escopo de atividades inseridas no Centro de Simulação.

No contexto contemporâneo, a simulação atende de forma privilegiada às características da geração Z, composta por estudantes nascidos após 1995, altamente conectados e acostumados a interações digitais rápidas e dinâmicas. Esses alunos valorizam metodologias que lhes permitam participar ativamente do processo de aprendizagem, receber feedback imediato e personalizar sua experiência de estudo. A simulação oferece exatamente esse tipo de ambiente: um espaço de aprendizado seguro, interativo, adaptável e centrado no estudante. Além disso, promove o engajamento emocional, essencial para a fixação do conhecimento, ao aproximar o estudante de situações reais de tomada de decisão clínica sob pressão.

A implementação da simulação como metodologia ativa exige planejamento cuidadoso. O primeiro passo é a definição clara dos objetivos de aprendizagem, que podem variar desde o treinamento de uma habilidade técnica simples, como a passagem de uma sonda nasogástrica, até a condução de cenários complexos de urgência, que envolvem múltiplos profissionais e requerem raciocínio clínico, comunicação efetiva e liderança. Uma vez estabelecido o objetivo, seleciona-se o tipo de simulação mais adequado — que pode ser de baixa, média ou alta fidelidade — e o grau de realismo necessário para alcançar os resultados esperados. Importante ressaltar que a fidelidade não se limita ao equipamento, mas inclui também aspectos do cenário, dos materiais, do comportamento dos atores e da complexidade da situação proposta. A fidelidade psicológica, ou seja, a capacidade de envolver emocionalmente o aluno e induzir respostas autênticas, é muitas vezes mais relevante que a sofisticação tecnológica.

Turma de alunos e professores reunidos ao redor de um manequim de simulação em um espaço circular de ensino, durante atividade prática em ambiente de aprendizado interativo.
Inauguração do laboratório, com diversos professores presentes, enquanto participamos nas arenas

Outro componente crucial da implementação é o debriefing, momento em que ocorre a reflexão estruturada após o cenário. Mais do que fornecer feedback, o debriefing promove a metacognição, permitindo que os estudantes analisem suas decisões, reconheçam acertos e identifiquem pontos de melhoria. Essa etapa é essencial para consolidar o aprendizado e transformá-lo em mudanças de comportamento futuras. Modelos consagrados, como o debriefing estruturado em três etapas (descrição, análise e aplicação), têm se mostrado eficazes no ensino de competências clínicas e comportamentais.

Os benefícios da simulação são numerosos. Ela proporciona um ambiente livre de riscos para o paciente, permite a repetição ilimitada de procedimentos até que a proficiência seja atingida, possibilita padronização de cenários e comparabilidade entre alunos, favorece o trabalho em equipe e a prática interprofissional, e promove a cultura de segurança ao estimular a identificação e correção de erros. No entanto, é necessário reconhecer também suas limitações. A simulação requer investimento financeiro considerável em infraestrutura e manutenção de equipamentos, bem como capacitação contínua de instrutores. Além disso, pode gerar resistência entre docentes que não tiveram contato prévio com a metodologia e que demandam tempo adicional para planejar e executar cenários de qualidade. Outro ponto a ser considerado é que, embora aumente a preparação do estudante, a simulação não substitui a vivência real com o paciente, que continua sendo insubstituível para o desenvolvimento pleno da empatia e da sensibilidade clínica.

A avaliação do impacto da simulação no aprendizado também tem sido tema de estudos, e há evidências consistentes de que ela melhora o desempenho técnico, aumenta a confiança do estudante e reduz erros em situações reais. Modelos de prática deliberada, com repetição de cenários e feedback imediato, mostraram-se eficazes na aquisição de habilidades complexas e na retenção de conhecimento a longo prazo. Além disso, a simulação permite avaliar não apenas conhecimentos teóricos, mas também competências não técnicas, como liderança, comunicação e gerenciamento de recursos em situações críticas, aspectos fundamentais para a segurança do paciente.

Portanto, a simulação representa um avanço significativo na formação médica ao alinhar-se às demandas contemporâneas de educação baseada em competências, segurança do paciente e aprendizado ativo. Sua implementação, quando bem estruturada, atende às aspirações de aprendizado da nova geração de estudantes, que buscam experiências interativas, feedback rápido e oportunidades de desenvolver autonomia. Ao permitir a prática repetida, o erro sem consequências reais e a reflexão crítica, a simulação forma profissionais mais preparados, seguros e conscientes de seu papel no cuidado à saúde.

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