
Com certa frequência, tanto médicos, quanto pesquisadores e até a população em geral, nos fazem dois questionamentos em relação à Puberdade Precoce: (1) a idade de início da puberdade está se antecipando? (2) a incidência de Puberdade Precoce está aumentando?
Os estudos epidemiológicos realizados em vários lugares do mundo, incluindo o Brasil, nos anos 60 e 70 do século XX definiram a distribuição em Curva de Gauss da idade de início do aparecimento dos caracteres sexuais secundários. Para as meninas, a média foi de 10,5 anos, o limite inferior (-2DP) de 8 anos e o limite superior (+2DP) de 13 anos. Para os meninos, a média foi de 11,5 anos, o limite inferior (-2DP) de 9 anos e o superior (+2DP) de 14 anos. Ou seja, teoricamente, apenas cerca de 2% da população normal inicia a puberdade antes dos 8 anos nas meninas e antes dos 9 anos nos meninos1. Portanto, toda puberdade que se inicia antes dessas idades deve ser avaliada com atenção.
No final do século XX, os estudos da pediatra americana Herman-Giddens mostraram que cerca de 15% das meninas negras americanas e 5% das brancas começavam a puberdade antes dos 7 anos2; e, dados semelhantes, porém com menor percentual, também foram relatados, pela mesma pesquisadora, para os meninos antes dos 8 anos3. Nesta época, tanto a autora como outros pesquisadores associaram estes resultados à epidemia de obesidade que ocorria nos EUA desde os anos 70. Estes dados americanos foram depois também relatados em vários outros lugares do mundo, como Holanda e Itália, mas não em outros, como Espanha e Israel. Por isso, apesar de amplamente discutido na época4, os limites de idade para definição de Puberdade Precoce não foram modificados5.
A análise dessas diferenças de idade de início da puberdade recai sobre a incidência de obesidade na infância em cada país, a origem genética de cada país, e sua associação entre puberdade e obesidade. No entanto, como a imensa maioria desses estudos epidemiológicos foram retrospectivos, não há como mostrar se o aumento do IMC precede o início precoce da puberdade ou é uma consequência dele6. Esta questão não será resolvida até que grandes estudos longitudinais consigam acompanhar crianças com uma ampla faixa de IMC, desde os 4/5 anos até pelo menos os 13/14 anos, com medidas antropométricas cuidadosas e estadiamento puberal em intervalos regulares.
Dados do início do século XXI, pré-pandemia, mostram que a idade da primeira menstruação diminuiu de uma média entre 16 e 17 anos no século XIX para entre 12 e 13 no século XX na maioria dos países desenvolvidos e estando estável nesses níveis há mais de 30 anos7. Dados do estudo ERICA mostram que a idade da menarca no Brasil está entre 11 e 12 anos, sendo menor nas regiões Sul e Sudeste em relação às Norte, Nordeste e Centro-Oeste; menor em meninas de escola privada que públicas; menor na zona urbana que na rural, e menor nas meninas negras em relação às brancas, asiáticas e indígenas8.
Portanto, não existem evidências consistentes para afirmar que a idade de início da puberdade está diminuindo e nem que a menarca esteja se antecipando.
No final de 2019, os primeiros casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS) relacionados ao surgimento de uma nova cepa de coronavírus (CoV-2), posteriormente denominada Covid-19, foram detectados em Wuhan, China. O início foi seguido por uma rápida disseminação, atingindo o mundo ocidental no início de 2020.
O crescimento exponencial e a gravidade dos casos, juntamente com a necessidade de alocar recursos de saúde para esses pacientes, levaram a Organização Mundial da Saúde (OMS) a declarar a Covid-19 uma pandemia em março de 2020. Imediatamente depois, a maioria dos governos declarou estado de emergência sanitária e implementou medidas de distanciamento social. Essas medidas incluíram, entre outras, fechamento de escolas, lockdown, restrições de circulação, mudanças na dinâmica trabalhista e importantes restrições às atividades esportivas. Embora o escopo, o cumprimento e a duração dessas medidas tenham variado entre os diferentes países, mudanças inegáveis nos estilos de vida, dietas e relações sociais foram geradas, além do próprio estresse da situação da pandemia e do impacto econômico em diferentes países e nas famílias. Uma das medidas com impacto significativo sobre a população pediátrica foi a restrição total ou parcial de acesso às escolas. Uma pesquisa realizada em 30 países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) descreveu que, entre março de 2020 e maio de 2021, as pré-escolas permaneceram fechadas por uma média de 55 dias, enquanto as escolas primárias permaneceram fechadas por 78 dias, representando entre 28% e 55% do ano letivo. Um relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) destaca diferenças significativas entre os países. Por exemplo, a Turquia relatou o fechamento completo das escolas primárias por 241 dias, o Brasil por 175 dias, a Argentina por 157 dias, a Itália por 93 dias, a Espanha por 66 dias e a França por 48 dias9.
Nos meses que se seguiram ao início da pandemia, foram observadas mudanças nos motivos de consultas médicas nas instituições de saúde. Em alguns casos, essas mudanças foram interpretadas como consequência direta da agressão viral, enquanto em outros foram resultado de mudanças nos padrões de consulta da sociedade. Assim, consultas relacionadas à atenção primária e à prevenção foram deixadas para trás9.
Em endocrinologia, por exemplo, foram notáveis o surgimento de novos casos de diabetes tipo 1 diretamente ligados a Covid-19, alterações no padrão de controle glicêmico em pacientes com diabetes preexistente, aumento nas taxas de sobrepeso/obesidade em crianças e adolescentes, relatos de casos de doenças autoimunes da tireoide, casos mais agudos de Covid devido à insuficiência adrenal preexistente, alterações nos padrões de avaliação de crianças com restrição de crescimento ou baixa estatura e alterações na incidência de Puberdade Precoce.
Endocrinologistas pediátricos perceberam um aumento no número de consultas relacionadas à Puberdade Precoce ou acelerada durante os meses seguintes ao lockdown. Relatos de diferentes partes do mundo, incluindo Brasil, destacaram um aumento de duas a três vezes no número de casos de Puberdade Precoce tratados em Centros de Endocrinologia Pediátrica. A maioria desses estudos baseou seus dados na comparação com os anos anteriores, expressando isso como o aumento absoluto no número de pacientes avaliados por ano ou mês, aumento percentual em relação ao número total de pacientes tratados no serviço ou o cálculo da incidência com base na população potencialmente suscetível. A maioria desses estudos não mostrou diferenças clínicas entre as populações pré e pós-pandemia. No entanto, alguns dos relatos sugeriram que alguns pacientes ganharam peso durante a pandemia. Algumas das diferenças nos níveis hormonais foram discretas ou inexistentes. Alguns autores tentaram investigar mecanismos potenciais por meio de pesquisas para avaliar mudanças de hábitos e níveis de estresse. No entanto, como se aplicaram apenas à população diagnosticada durante a pandemia, poucos estudos incluíram grupos de controle saudáveis, levando a um viés na análise.
No entanto, o aumento no número de casos de início puberal precoce independentemente dos critérios utilizados para incluir pacientes nas diversas séries parece ser indubitável. Porém, o número de casos de Puberdade Precoce pós-pandemia foi decrescendo progressivamente, até atualmente já estar em níveis pré-pandemia.
Essa tendência de incidência de Puberdade Precoce sugere fortemente que mudanças nos hábitos e no ambiente em que as crianças estiveram imersas durante o confinamento desempenharam um papel significativo na reativação precoce do eixo gonadotrófico.
Preservar o bem-estar físico e psicológico de nossas crianças deve ser uma prioridade quando medidas extremas forem tomadas, considerando as lições aprendidas. Análises futuras desses dados epidemiológicos provavelmente irão permitir uma compreensão mais profunda dos mecanismos biológicos subjacentes ao início da puberdade.
Portanto, podemos concluir que fatores ambientais, especialmente ligados à nutrição, desempenham um evidente papel no controle da puberdade. No entanto, não existem evidências para se afirmar que a puberdade está ocorrendo em idade mais precoce e nem em maior frequência.
Referências
- Parent A-S, Teilmann G, Juul A, Skakkebaek NE, Toppari J, Bourguignon J-P. The timing of normal puberty and the age limits of sexual precocity: variations around the world, secular trends, and changes after migration. Endocr Rev. 24(5):668-93, 2003.
- Herman-Giddens ME, Slora EJ, Wasserman RC, Bourdony CJ, Bhapkar MV, Koch GG, et al. Secondary sexual characteristics and menses in young girls seen in office practice: a study from the Pediatric Research in Office Settings network. Pediatrics. 99(4):505-12, 1997.
- Herman-Giddens ME, Steffes J, Harris D, Slora E, Hussey M, Dowshen SA, et al. Secondary sexual characteristics in boys: data from the Pediatric Research in Office Settings Network. Pediatrics. 130(5):e1058-68, 2012.
- Kaplowitz PB, Oberfield SE. Reexamination of the age limit for defining when puberty is precocious in girls in the United States: implications for evaluation and treatment. Drug and Therapeutics and Executive Committees of the Lawson Wilkins Pediatric Endocrine Society. Pediatrics. 104(4 Pt 1):936-41, 1999.
- Kaplowitz P. Pubertal development in girls: secular trends. Curr Opin Obstet Gynecol. 18(5):487-91, 2006.
- Kaplowitz PB. Link between body fat and the timing of puberty. Pediatrics. 121 Suppl 3:S208-17, 2008.
- Sørensen K, Mouritsen A, Aksglaede L, Hagen CP, Mogensen SS, Juul A. Recent secular trends in pubertal timing: implications for evaluation and diagnosis of precocious puberty. Horm Res Paediatr. 77(3):137-45, 2012.
- Barros BS, Kuschnir MCMC, Bloch KV, Silva TLND. ERICA: age at menarche and its association with nutritional status. J Pediatr (Rio J). 95(1):106-11, 2019.
- Alonso G. Precocious puberty, pandemic and beyond. Pituitary. 27:916-24, 2024.