
Tanto a literatura científica quanto a legislação brasileira, em seus diferentes níveis, são claras na determinação do papel do SUS como campo de formação para médicos e outros profissionais da saúde, assim como na necessidade de que cursos de medicina contemplem em seus currículos atividades de formação em cenários de Assistência Primária à saúde (APS), especificamente nas Unidade Básicas de Saúde (UBS). A Lei 8.080/1990, que regulamenta o SUS, estabelece eu seu artigo 6º que é campo de atuação do SUS a “ordenação da formação de recursos humanos na área da saúde”, complementando no artigo 15º que são atribuições da União, Estados e Municípios a “participação na formulação e execução da política de formação e desenvolvimento de recursos humanos para a saúde”.
Estas normas estão em consonância com os documentos que balizam a formação do médico no Brasil, em particular com a Diretriz Curricular Nacional (DCN) vigente para o curso de Medicina (2014), que aponta os cenários de atenção básica e emergência do SUS entre os campos de formação prioritários (determinação mantida nas versões preliminares das novas DCN). As DCN vão além, determinando um modelo para formalização das parcerias entre os gestores do SUS e as instituições de ensino superior (IES), baseado no chamado “Contrato Organizativo de Ação Pública de Ensino-Saúde” (Coapes) ou instrumento análogo. Regulamentado pela Portaria Interministerial 1127/2015, o COAPES deixa mais clara as atribuições de cada parte na administração do uso destes cenários, entre as quais destacamos, (i) para as IES: a supervisão efetiva dos estudantes; oportunidades de formação para profissionais da rede; e contribuição com investimento nos cenários de prática na rede; e (ii) para os gestores do SUS: distribuição equânime dos cenários de prática (…) priorizando as instituições públicas; estímulo às atividades de preceptoria em suas políticas de valorização.
Por fim, há extensa literatura científica sobre a importância da chamada integração ensino-serviço na formação de novos médicos. Os benefícios desta integração envolvem entre outros pontos, uma formação mais coerente com as demandas epidemiológicas da população, um conhecimento mais preciso de como o sistema de saúde pode ser mobilizado em prol do paciente e de seu próprio fortalecimento, e maior possibilidade de fixação de médicos no SUS, sistema responsável pelo atendimento a 70% dos brasileiros.
Posto este cenário, passemos à pergunta título deste artigo, que aborda os desafios para garantia de cenários de prática adequados para nossos alunos. Contribuem para o uso do termo “desafio” fatores amplamente reconhecidos como o explosivo aumento de cursos de medicina que competem pelos mesmos cenários, mas também a qualificação da própria rede de APS, pela incorporação de outros profissionais às equipes dentro dos mesmos equipamentos. Outro aspecto relevante deste desafio diz respeito à compreensão por vezes heterogênea, tanto por parte de profissionais das IES, quanto por profissionais da rede de APS dos objetivos e potencialidades da inserção de alunos no SUS, que não raro gera ruídos na interação entre estes atores comprometendo o potencial por melhores arranjos.

A este contexto desafiador somam-se dados preocupantes demonstrados no estudo Demografia Médica 2023. Em primeiro lugar, o interesse relativamente baixo dos médicos recém-formados em atuar prioritariamente no SUS, que cai ainda mais no 5º ano após a formatura. E em segundo, o descolamento do número de vagas de residência médica e de egressos dos cursos de medicina, que levará a um contingente cada vez maior de jovens médicos atuando imediatamente após a graduação, muito frequentemente em equipamentos do SUS. Uma inserção mais qualificada de alunos em UBS durante o curso pode contribuir para mitigar, ao menos em parte, estes dois desafios, sem prejuízo para ações que promovam a complementação da qualificação da formação médica através da residência médica, inclusive em áreas prioritárias para o SUS como a Medicina de Família e Comunidade, que consideramos como modelo mais bem-sucedido em nosso meio.
A reforma curricular em andamento no curso de Medicina da FCM – Unicamp contempla carga horária expressiva para atividades na rede de APS, distribuída ao longo de todo o curso. Nosso desafio é explorar da melhor forma esta carga horária para promoção das competências relacionadas à assistência da saúde individual e à compreensão do funcionamento do SUS, ambas destacadas nas DCN e em nosso Perfil do Egresso. Chamamos atenção para o fato que além do ganho ligado à inserção no SUS, a experiência na UBS também dá a nossos alunos a oportunidade de atendimento marcado por expressiva autonomia em comparação a outros cenários, elemento que é reconhecido como crítico para a construção efetiva da capacidade de raciocínio clínico.
Mas para que sejamos bem sucedidos neste desafio, a manutenção e consolidação de uma relação construtiva com os gestores locais é essencial. Historicamente isso vem sendo construído através de diversas estratégias, com a participação dos gestores das disciplinas mais ligadas às UBS como a MD758 e disciplinas do Departamento de Saúde Coletiva (DSC). Fazem ainda parte destas ações conjuntas o oferecimento regular de oportunidades de educação continuada para profissionais da rede na FCM, como por exemplo o curso de gerentes fornecido pelo DSC, além de ações que valorizam a inserção antecipada de nossos alunos nas UBS, a atuação interprofissional e projetos de extensão envolvendo a APS. Como novas perspectivas, citamos um acordo recente com a Prefeitura Municipal de Paulínia para assinatura de um Coapes, e uma iniciativa conjunta da Comissão de Extensão da FCM e dos membros da trilha de Assistência Primária da Reforma Curricular de incorporar de forma mais decisiva e sistematizada atividades de extensão como parte da formação dos alunos do 4º ano nas UBS. Em última análise, a busca constante de convergências e estreitamento nas relações com os gestores do SUS, em particular com a Secretaria Municipal de Campinas, nossa parceria mais importante nesta área, através de canais de diálogo que permitam o planejamento contínuo e conjunto das iniciativas de ensino, que tragam ganhos para todos.