Você vai dormir com a expectativa de acordar no dia seguinte e tocar a vida como qualquer outra pessoa: prova na escola, compromisso no trabalho, festinha de aniversário do filho. Mas de forma inesperada e contra todas as expectativas, você acorda com dores terríveis e um mal estar impossível de descrever por quem nunca sentiu. Você tenta se livrar da dor com os analgésicos que tem em casa, mas nada resolve e você passa o dia (ou os próximos dias) no hospital – perdeu o trabalho, a prova, e o aniversário do filho. Imagine viver todos os seus dias assim, sem garantias para os seus planos. Esse pode ser o relato comum de uma pessoa vivendo com Doença Falciforme: alguém que desde a infância sabe que cada dia é um dia imprevisível.
Afetando milhões de pessoas no mundo todo e com estimativas de acometimento de até 100 mil brasileiros, essas doenças são causadas por uma mutação no gene da hemoglobina, a molécula que funciona como carreadora de oxigênio dentro das hemácias, as células vermelhas do sangue. Apesar de tratar-se de uma mutação bastante pontual, essa variante de hemoglobina (chamada de hemoglobina S – HbS) gera consequências de imenso impacto. A mudança na conformação da hemoglobina faz com que as hemácias percam sua flexibilidade, assumindo a forma de foice (daí o nome da doença – falciforme). Essas hemácias mais rígidas levam a dois principais fenômenos: 1) a quebra prematura dessas células (hemólise), levando a quadros variáveis de anemia e suas repercussões, como fadiga e cansaço crônicos, e 2) a oclusão de pequenos vasos, prejudicando a oxigenação local e com isso levando a quadros de dores excruciantes e danos irreversíveis em órgãos diversos, como coração, rins, fígado, pulmões e cérebro.
Sendo uma patologia hereditária e crônica, e com uma ampla variedade de manifestações clínicas, no ambulatório de Doenças Falciformes é possível observar uma grande diversidade de pessoas – de crianças a adultos, homens e mulheres, andando normalmente ou dependendo de próteses, e com níveis variados de acometimento das funções orgânicas. Mas algo que qualquer um também notaria é a grande predominância de pessoas negras. E isso não é por acaso. As teorias científicas mais robustas apontam que a mutação que causa a doença muito provavelmente surgiu no continente africano, como um mecanismo protetor contra a malária; a disseminação da mutação na população acabou com o tempo levando a quadros de homozigose ou heterozigose com outras mutações (como a da hemoglobina anômala C, ou a herança conjunta com o gene da β-talassemia), e que levam à expressão das suas diversas manifestações clínicas.
No Brasil, essa relação fica evidente com a maior prevalência da doença nas regiões litorâneas, ou em estados como Bahia e Minas Gerais – como um reflexo do tráfico de escravos na era colonial. Mas mais do que uma associação qualquer, a origem da mutação no continente africano e a relação com a escravidão trazem consequências de imenso impacto para esses pacientes. É importante lembrar que estamos discorrendo sobre uma doença sistêmica, muitas vezes incapacitante, que demanda uso contínuo de medicações, acesso a múltiplas especialidades, cirurgias e transfusões de sangue. E com uma chance de cura – o transplante de células tronco – ainda muito remota para a maioria, pois depende de doador compatível e de uma estrutura hospitalar adequada. Tudo isso ocorrendo em uma população com um histórico expressivo de falta de acesso aos sistemas de saúde, com níveis econômicos e de escolaridade precários, de forma ainda mais impactante em regiões mais remotas do país e fora de grandes centros.

Essa infelizmente é a receita que faz o sofrimento ser ainda maior do que o esperado, e fica como exemplo de como as condições sociais deveriam ser encaradas como um dos principais determinantes de saúde. Sem acesso garantido a medicações e a intervenções multiprofissionais, sem leitos para internação e com chances mínimas de um tratamento curativo, essas pessoas entram em um ciclo de sofrimento perpétuo – o controle inadequado leva a piora contínua das complicações, que refletem em maior incapacidade e limitação, impedindo o acesso também aos estudos e ao mercado de trabalho, piorando por sua vez novamente as condições de saúde.
Vivemos, portanto, um aparente paradoxo. Cientistas ao redor de todo o globo estão debruçados na busca e nos testes de tratamentos mais efetivos, que incluem até mesmo a terapia gênica, com o objetivo de eliminar completamente a mutação. E de fato, os avanços são notáveis. Há algumas décadas, um ambulatório de doenças falciformes era um ambulatório de pediatria – no máximo, com alguns adolescentes. Hoje, o ambulatório do Hemocentro UNICAMP já tem seus pacientes “sessentões”, alguns inclusive cruzando a barreira dos 70 anos. Isso foi reflexo do maior entendimento sobre a patologia, suas complicações, e maneiras de atenua-las ou preveni-las. Um desses avanços é o próprio “teste do pezinho”, ou triagem neonatal, que permite que os pais possam prontamente receber orientações de cuidados com o recém-nascido e instituir as medidas necessárias o mais precocemente possível – e que incluem esquema de vacinações ampliado, uso de antibióticos e o emprego da Hidroxiureia.
De fato, a Hidroxiureia aparece como uma grande revolução no tratamento dessas pessoas. Inicialmente usado como quimioterápico, observou-se o seu potencial em aumentar os níveis da hemoglobina Fetal (HbF): o tipo de hemoglobina que é utilizado para carreamento de oxigênio no período intraútero, e que fica em níveis quase imperceptíveis já nos primeiros meses de vida. Com a retomada de sua produção nas hemácias através do uso da hidroxiureia, ocorre um efeito dilucional, diminuindo proporcionalmente a concentração da hemoglobina S anômala (HbS) e com isso reduzindo a frequência de crises e a sobrecarga crônica em diversos órgãos. No Brasil, a medicação é dispensada de forma gratuita nas farmácias de alto custo do SUS, assim como outras medicações de apoio ao tratamento, que incluem quelantes de ferro, nefroprotetores e estimulantes da eritropoiese.
Mas na outra ponta desse paradoxo tecnológico e de inovação, e isoladas nas periferias globais, muitas dessas pessoas seguem padecendo de um estado de negligência crônico, sem acesso ao mínimo: com dor na maior parte dos dias, e vivendo menos tempo e com mais complicações. Muito mais que apenas remédios, essas pessoas precisam também de transporte, segurança alimentar, apoio à saúde mental, reabilitação e renda garantida com postos de trabalho compatíveis. Seguimos então nesse desafio de prover muito mais do que condições de tratamento – estamos ainda patinando em como garantir condições mínimas de uma vida digna, apesar da doença. Porque esses pacientes nos lembram, todos os dias, que o conceito de saúde precisa também abranger segurança social, qualidade de vida e o direito de ser feliz.

