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+ História Ano 2025, Volume 13, nº 4: Novas tecnologias Boletim FCM (ISSN: 2595-9050)

Avanços tecnológicos das cirurgias pediátricas minimamente invasivas

As perspectivas futuras apontam para o desenvolvimento de sistemas robóticos e instrumentos mais delicados...

Imagem de capa detalhada: registro de cirurgia pediátrica minimamente invasiva realizada pelo professor da FCM, Márcio Lopes de Miranda.
Imagem de capa detalhada: registro de cirurgia fetal minimamente invasiva realizada pelo professor da FCM, Márcio Lopes Miranda.

Embora Ambroise Paré (1510–1590), considerado um dos pais da cirurgia moderna, fosse chamado de “barbeiro-cirurgião” e não recebesse o devido reconhecimento científico em sua época, realizou pesquisas de grande relevância no tratamento das feridas de amputações. Nesse período, os procedimentos cirúrgicos eram marcados por extrema violência e sofrimento: em amputações, por exemplo, utilizava-se golpes na cabeça ou compressão da carótida para induzir inconsciência, e a principal habilidade valorizada em um cirurgião era a rapidez na execução da operação.

Com o avanço da anestesiologia no século XIX, a introdução de gases como o éter e o clorofórmio permitiu a perda da consciência, trazendo mais tranquilidade e segurança para a prática cirúrgica. Isso possibilitou a realização de procedimentos mais complexos, como a ressecção de tumores, ainda que com alta morbimortalidade. Outro marco fundamental foi o reconhecimento da antissepsia cirúrgica por Semmelweis, que reduziu drasticamente as infecções pós-operatórias e aumentou a sobrevida dos pacientes.

Naquele momento, o foco dos cirurgiões era alcançar e remover o “alvo” da doença, pouco importando a agressão sofrida pelo paciente. Com o tempo, e diante da divulgação dos resultados, a atenção passou a se voltar também para a sobrevida e a qualidade de vida dos operados.

A equipe de cirurgia pediátrica da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
A equipe de cirurgia pediátrica da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.

O aforismo “Grandes cirurgiões, grandes incisões” marcou a prática cirúrgica do início do século XX. A prioridade era retirar o tumor, sem considerar o custo imposto ao paciente. As amplas incisões em pele, músculos e até ossos só eram vistas como problemáticas quando resultavam em complicações, como infecções, deiscências, eviscerações e internações prolongadas. Mesmo cirurgias menores afastavam os pacientes de suas atividades cotidianas e laborais por longos períodos.

No início do século XX, Georg Kelling introduziu a ideia revolucionária de visualizar a cavidade abdominal por meio de um pequeno orifício com auxílio de uma ótica e esta inovação foi o marco inicial da videocirurgia. Essa técnica, que consistia em insuflar ar e observar a cavidade sem grandes incisões, abriu caminho para diagnósticos e biópsias minimamente invasivas. Com a introdução de mais portais (pinças), passou a ser possível  a realização de cirurgias complexas comparáveis às convencionais “a céu aberto”. Assim nasceu a cirurgia minimamente invasiva, trazendo vantagens como melhor estética, menor dor, recuperação mais rápida, menor risco de infecções e poucas aderências intestinais. Esse método, no entanto, deve sempre seguir os mesmos princípios da cirurgia convencional para garantir resultados equivalentes.

A especialização cirúrgica no século XX foi necessária para acompanhar os avanços tecnológicos e científicos. Na década de 1950 surgiram várias subespecialidades, entre elas a cirurgia pediátrica, reconhecida como especialidade médica no Brasil em 1969 e nos Estados Unidos em 1973.

Os cirurgiões pediátricos sempre valorizaram as pequenas incisões, observando com isso, recuperação mais rápida nas crianças. O aforismo que sempre norteou a área foi “menos é mais”. Com a chegada da cirurgia minimamente invasiva, os pacientes pediátricos também se beneficiaram, sendo a avaliação e correção de testículos abdominais,  uma das primeiras indicações no final do século XX. O desenvolvimento de novas tecnologias, como instrumentos de 3 mm (óticas e pinças), permitiu estender a técnica até mesmo aos recém-nascidos com malformações complexas. Um exemplo notável foi a correção da atresia de esôfago por videotoracoscopia em neonatos, realizada com precisão e segurança, evitando a toracotomia e suas frequentes sequelas.

Mais recentemente, os médicos-cirurgiões, agora não mais considerados barbeiros-cirurgiões, avançaram em direção ao útero e ao feto. Isso só foi possível com a evolução da ultrassonografia nos anos 1980, que permitiu o diagnóstico precoce de malformações, e com o desenvolvimento de drogas tocolíticas, capazes de manter o útero relaxado mesmo após intervenções.

As primeiras cirurgias fetais abertas ocorreram nessa década, onde o útero era exposto, aberto (histerotomia), o feto parcialmente exteriorizado, operado e recolocado em sua cavidade. Embora pioneira, a técnica acarretava prematuridade, complicações neonatais e necessidade de cesariana em gestações subsequentes devido ao risco de ruptura uterina.

Na década de 1990, buscou-se reduzir essa agressão com abordagens minimamente invasivas. No início, os resultados foram insatisfatórios e desalentadores, pois utilizaram instrumentos desenvolvidos para adultos e inapropriados para a cirurgia intrauterina. Assim, a cirurgia fetal aberta permaneceu como padrão ouro por algum tempo.

No século XXI, com a criação de instrumentos de 3 mm (trocáteres, óticas, pinças) e insuflador de CO₂ aquecido e umidificado, aliados a equipes altamente especializadas, foi possível retomar a cirurgia fetoscópica minimamente invasiva. Nessas técnicas, após anestesia materno-fetal, o útero é exposto, os portais são inseridos diretamente no útero, as membranas fixadas e a cavidade amniotica é parcialmente preenchida com gás carbônico. Ao término do reparo fetal, o gás é retirado, o líquido amniótico reposto com soro fisiológico, e o útero reposicionado. Esses cuidados melhoraram significativamente os desfechos, reduzindo prematuridade e preservando a possibilidade de parto vaginal.

Muitas doenças que acometem os fetos são passíveis de correção intra-uterina. A separação dos vasos placentários nas transfusões feto-fetais,  oclusão traqueal na hérnia diafragmática, correção dos defeitos de tubo neural (mielomeningocele) e obstruções urinárias (válvula de uretra posterior), são exemplos de procedimentos que podem ser realizados em casos selecionados com idades gestacionais especificas, e devem seguir aos princípios propostos por Michael Harrison: Benefício evidente ao feto e preservação da mãe.

A cirurgia robótica proporcionou maior precisão e refinamento nos movimentos das pinças intracavitárias, sendo hoje amplamente empregada na população pediátrica. Entretanto, os instrumentos disponíveis ainda apresentam dimensões robustas, o que limita sua aplicabilidade em lactentes e neonatos, sem evidências consistentes de benefícios nessa faixa etária. As perspectivas futuras apontam para o desenvolvimento de sistemas robóticos e instrumentos mais delicados, como os de portal único, capazes de expandir os potenciais benefícios também para a cirurgia fetal.

A tendência atual da medicina é buscar o melhor resultado com a menor agressão possível, seja em malformações congênitas, traumatismos e até no tratamento multimodal do câncer. Muitas vezes, o tratamento conservador também mostrou-se eficaz e seguro. O tratamento conservador do trauma esplênico é um exemplo emblemático, onde, grande parte dos casos é manejada sem cirurgia, graças ao suporte intensivo e ao auxílio de exames de imagem como ultrassonografia e tomografia computadorizada.

Por fim, ainda que testemunhemos uma evolução tecnológica acelerada, com destaque para a inteligência artificial, é fundamental lembrar que a cirurgia deve permanecer humanizada, ética e baseada em evidências, sendo um legado essencial a ser transmitido às próximas gerações de médicos.

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