Conteúdo principal Menu principal Rodapé

O emprego da tecnologia, e particularmente da Inteligência Artificial (IA), vem redefinindo o ensino dos futuros profissionais de saúde. Neste breve relato, pretendo comentar sobre os temas abordados no último congresso da AMEE (Associação para a Educação Médica na Europa), realizada em agosto último. Por ser parte da comissão julgadora da linha temática de Aprendizagem Aprimorada por Tecnologia (Technology Enhanced Learning – TEL), pude ter acesso aos abstracts de trabalhos de todo o mundo, e pude observar com a Inteligência Artificial (IA) está sendo integrada na formação médica. Assim, este breve relato se baseará mais nas tendencias em TEL e IA do que em estudos já publicados.

Diante da extensa temática dos trabalhos, optei por escolher cinco dos principais temas, os quais comentarei a seguir, oferecendo um panorama de como eles podem ser incorporados no ensino da emergência. Estes temas são: 1) aprendizagem personalizada e adaptativa, 2) gamificação, 3) ferramentas de apoio à decisão clínica, 4) treinamento de habilidades de comunicação e colaboração interdisciplinar, e 5) plataformas digitais e recursos multimídia. Todos eles podem ser aplicados no ensino de emergência, de diversas maneiras.

1. Aprendizagem Personalizada e Adaptativa

A aprendizagem personalizada é uma abordagem transformadora que adapta o conteúdo educacional às necessidades, estilos e ritmo de cada aluno. No contexto de emergência, onde a diversidade de casos é vasta e o tempo de reação é crítico, um modelo “tamanho único” pode ser insuficiente, particularmente num contexto em que estudantes podem ter ritmos diferentes e necessidades particulares de aprendizagem. A tecnologia, especialmente a IA, surge como um catalisador para essa personalização.

Como explorá-la no ensino de emergência

Trilhas de Aprendizagem Dinâmicas com IA

Plataformas de IA podem ser projetadas para criar planos de estudo de medicina de emergência direcionados não só para o ano de formação (seja graduação ou residência), como também para o/a aluno/a. Um sistema pode, por exemplo, analisar o desempenho de um/a aluno/a em questionários sobre protocolos de abordagem do paciente séptico e, ao identificar lacunas de conhecimento, gerar automaticamente novas perguntas e materiais de revisão focados nessas áreas. Essa abordagem garante que estudantes reconheçam seus pontos fracos de forma contínua, reforçando-os e promovendo uma aprendizagem mais eficiente. Os professores, por sua vez, podem usar esses dados para mapearem áreas que necessitam de revisão de técnicas de ensino e assim, fornecerem orientação direcionada.

Flashcards Inteligentes e Repetição Espaçada

Os Flashcards são uma ferramenta de estudo projetada para ajudar na memorização e retenção de informações a longo prazo. Tradicionalmente, eles são cartões físicos com uma pergunta ou termo de um lado e a resposta ou definição do outro. No contexto moderno e digital, eles funcionam da mesma maneira, mas em formato eletrônico.  Atualmente, alguns aplicativos permitem a utilização de IA generativa para automatizar a criação de Flashcards personalizados. Por exemplo, para o ensino de emergência, um instrutor pode alimentar o sistema com diretrizes de Suporte Avançado de Vida em Cardiologia (ACLS) ou Suporte Avançado de Vida no Trauma (ATLS). A IA então criaria Flashcards interativos que se adaptam ao ritmo de aprendizagem do aluno, utilizando repetição espaçada para fortalecer a memória de longo prazo de conceitos críticos, como doses de medicamentos de emergência ou os passos do algoritmo de parada cardíaca. A personalização pode ir além, permitindo que os alunos ajustem o conteúdo para focar em seus próprios objetivos educacionais. Uma desvantagem seria a necessidade de assinatura para alguns desses aplicativos de Flashcards, porém, uma parceria institucional dentro da universidade pode potencializar a criação de códigos livres para este fim.

Análise de Desempenho e Feedback Automatizado

Um dos usos mais relevantes atualmente da IA na educação médica é analisar as interações de estudantes com casos clínicos virtuais ou respostas a questionários, fornecendo feedback imediato e detalhado. Por exemplo, ao analisar a transcrição de uma anamnese, a IA pode pontuar a qualidade das perguntas feitas pelo aluno e sugerir melhorias. Essa automação alivia a carga de trabalho do corpo docente e oferece aos alunos uma ferramenta de autoavaliação contínua e privada, o que pode reduzir a pressão e aumentar a honestidade na autoavaliação. A IA pode ainda ser treinada com algoritmos de raciocínio clínico baseado em evidências no contexto da emergência, identificando se o/a estudante é capaz de desenvolver um raciocínio que aponte para o correto diagnóstico, oferecendo insights valiosos também para a ocorrência de vieses de raciocínio. A implementação dessas tecnologias cria um ambiente de aprendizagem onde cada profissional em treinamento pode focar precisamente nas competências que mais necessita desenvolver, otimizando a preparação para os desafios imprevisíveis da sala de emergência.

2. Gamificação

A gamificação utiliza elementos de jogos — como pontos, medalhas e placares de líderes — para tornar o aprendizado mais envolvente e motivador. Essa abordagem já vem sendo usada pela Disciplina de Emergências há muitos anos, e é particularmente eficaz para a Geração Z, que prospera em ambientes interativos. No ensino de emergência, a gamificação pode transformar o estudo de protocolos complexos e o desenvolvimento de raciocínio clínico em uma experiência dinâmica e memorável.

Como explorá-la no ensino de emergência

Quizzes e Desafios Competitivos

Plataformas como Kahoot! e Quizizz podem ser usadas para criar competições em tempo real sobre tópicos de emergência, como a interpretação de eletrocardiogramas (ECGs) ou o manejo do coma. Um dos abstracts submetidos ao AMEE comparou o uso do Kahoot! com tutoriais baseados em ChatGPT e descobriu que a abordagem gamificada resultou em pontuações somativas mais altas e maior engajamento dos alunos. Tais atividades promovem a participação ativa e o pensamento rápido, habilidades essenciais em emergências.

Jogos Sérios (Serious Games)

Jogos sérios são projetados especificamente com propósitos educacionais. Para o ensino de emergência, um jogo pode simular o gerenciamento de um departamento de emergência, onde o aluno precisa alocar recursos, priorizar pacientes e tomar decisões diagnósticas e terapêuticas. Um exemplo é um jogo online para praticar a organização de instrumentos estéreis para cateterismo venoso central, com o objetivo de aumentar a familiaridade e a confiança antes do procedimento real. Outro estudo demonstrou que um jogo online sobre farmacologia melhorou o desempenho acadêmico dos alunos. Esses jogos podem integrar IA para criar cenários dinâmicos e fornecer feedback imediato.

Ao “gamificar” o aprendizado, os/as educadores/as da saúde podem aumentar a motivação intrínseca, melhorar a retenção de conhecimento e desenvolver habilidades de pensamento crítico em um ambiente de baixo risco, mas de alto engajamento.

Slide projetado em tela durante uma conferência. No topo, lê-se o título:
“What we mean by ethical, moral or legal issues against this backdrop in an era of AI”
(O que entendemos por questões éticas, morais ou legais nesse contexto em uma era de IA).

No centro do slide aparece uma página do site NIHR – HealthTech Research Centre In vitro diagnostics, com o título:
“AI Clinician”.

Abaixo, há uma imagem de um robô em uma sala cirúrgica, com o subtítulo em verde:
“Validation of an AI decision-making tool for sepsis treatment”
(Validação de uma ferramenta de tomada de decisão por IA para tratamento da sepse).

No canto superior direito do slide, está o logotipo do congresso AMEE 2025 Barcelona, com o globo estilizado.
Plenária no início do congresso da AMEE, realizado em Barcelona. A IA teve papel central nas discussões da edição de 2025

3. Ferramentas de Apoio à Decisão Clínica

A Inteligência Artificial está se tornando uma aliada indispensável na prática clínica, auxiliando no diagnóstico, planejamento de tratamento e gerenciamento de dados. No ensino de emergência, integrar essas ferramentas prepara os alunos para um futuro em que a colaboração humana-máquina será a norma, ao mesmo tempo em que aprimora suas habilidades de raciocínio clínico.

Como explorá-las no ensino de emergência

Geração de Diagnósticos Diferenciais

Podemos utilizar ferramentas como o ChatGPT para gerar rapidamente algoritmos que, partindo de uma vinheta clínica, percorrem um script de raciocínio até chegar aos diagnósticos diferenciais.  Por exemplo, um estudo descreveu uma sessão de aprendizado baseada em problemas (PBL – problem-based leaarning), em que os alunos eram encorajados a usar a IA para expandir suas hipóteses diagnósticas para um paciente com dor torácica atípica. O papel do educador, então, foi guiar uma discussão crítica sobre as sugestões da IA, ensinando os alunos a validar, refinar e priorizar a lista com base em evidências clínicas. Essa prática pareceu desenvolver o uso responsável da IA e o pensamento crítico simultaneamente.

Apoio na Interpretação de Exames

A IA já demonstra grande potencial na análise de imagens médicas, como radiografias e tomografias. No contexto educacional, um software de IA pode ser usado como uma “segunda opinião” para alunos que estão aprendendo a interpretar radiografias de tórax para identificar fraturas de costela ou pneumotórax. Um estudo mostrou que o treinamento assistido por IA melhorou significativamente a acurácia diagnóstica e a confiança dos estudantes na interpretação de radiografias, embora tenha levantado preocupações sobre a dependência excessiva no modelo. O objetivo não é substituir o julgamento humano, mas sim usá-lo como uma ferramenta de aprendizado para calibrar e aprimorar as habilidades interpretativas dos alunos. No contexto específico da ultrassonografia point of care, a IA pode ser utilizada de diversas maneiras. Alguns equipamentos ja possuem algoritmos para auxiliar no correto manuseio da sonda, oferecendo dicas sobre os movimentos para a realização das imagens. Outra ferramenta é o auto-labelling, no qual o software nomeia estruturas anatômicas, como câmaras cardíacas, automaticamente.

Análise de Dados e Protocolos Clínicos

Em emergências como a hemorragia maciça, a adesão a protocolos é vital. Nestes contextos, as plataformas de IA podem ser programadas para avaliar se as ações de um aluno em um estudo de caso estão alinhadas com as diretrizes atuais, fornecendo feedback em tempo real sobre a adequação das proporções de transfusão de sangue ou o momento da intervenção. Ferramentas de IA também podem ser usadas para revisar e resumir grandes volumes de literatura, ajudando os alunos a se manterem atualizados com as práticas baseadas em evidências. A integração dessas ferramentas no currículo não apenas melhora a eficiência do aprendizado, mas também ensina uma habilidade essencial para o médico do século XXI: como colaborar de forma eficaz e ética com a inteligência artificial para otimizar o cuidado ao paciente.

4. Treinamento de Habilidades de Comunicação e Colaboração Interdisciplinar

A comunicação eficaz e o trabalho em equipe são competências não técnicas cruciais em ambientes de emergência, onde decisões rápidas e coordenadas podem salvar vidas. A tecnologia oferece novas maneiras de treinar essas habilidades de forma escalável e segura, superando os desafios logísticos do treinamento presencial.

Como explorá-lo no ensino de emergência

Pacientes Virtuais (PVs) para Prática de Comunicação

Pacientes virtuais, especialmente aqueles alimentados por IA, podem simular conversas realistas, permitindo que os alunos pratiquem habilidades de comunicação, como coletar histórico do paciente, dar más notícias ou lidar com pacientes difíceis. Um estudo mostrou que alunos que praticaram com PVs melhoraram significativamente suas habilidades de comunicação e aconselhamento em cenários de anestesia. Diferentemente dos pacientes padronizados humanos, os PVs estão disponíveis a qualquer momento, permitindo prática ilimitada e feedback imediato. Os PVs podem ser projetados para representar uma diversidade de pacientes e cenários, incluindo barreiras linguísticas ou culturais, preparando melhor os alunos para a prática no mundo real.

Treinamento de Colaboração Interprofissional (TCI) com Avatares de IA

A coordenação entre profissionais da área médica, de enfermagem e farmacêuticos/as é fundamental na emergência. No entanto, reunir profissionais de diferentes disciplinas para sessões de treinamento é um desafio logístico. Avatares de IA podem representar diferentes profissionais da saúde em cenários de TCI. Um estudo piloto demonstrou que estudantes de medicina que interagiram com avatares virtuais de IA representando outros profissionais de saúde melhoraram sua autopercepção de competências de colaboração em equipe. Isso permitiu aos estudantes praticarem a comunicação interdisciplinar, como a passagem de informações estruturada (ex: ISBAR), sem as restrições de tempo e local do treinamento tradicional.

Análise de Comunicação Não-Verbal

A tecnologia também pode ser usada para analisar aspectos não-verbais da comunicação. Embora um estudo tenha revelado que o ChatGPT atualmente possui limitações na avaliação da empatia não-verbal, avanços futuros em IA multimodal podem permitir a análise de expressões faciais, tom de voz e linguagem corporal em vídeos de interações, fornecendo um feedback mais completo sobre as habilidades de comunicação dos alunos. A IA também pode analisar transcrições de conversas para identificar padrões linguísticos associados à empatia e à coleta eficaz de informações.

Essas tecnologias permitem um treinamento repetitivo e de baixo risco, construindo a confiança e a competência dos alunos em um dos aspectos mais desafiadores e humanos da medicina de emergência.

5. Plataformas Digitais e Recursos Multimídia

A transição para o aprendizado digital foi acelerada pela pandemia de COVID-19, destacando a necessidade de plataformas robustas e recursos multimídia que ofereçam flexibilidade e enriqueçam a experiência de aprendizagem. No ensino de emergência, onde o acesso a cenários clínicos reais pode ser limitado, os recursos digitais são inestimáveis.

Como explorá-los no ensino de emergência

Plataformas de E-learning e Repositórios de Conteúdo

Já amplamente utilizadas por diversas disciplinas da FCM, e em particular a Disciplina de Emergência, plataformas como Moodle e sistemas de gerenciamento de aprendizado personalizados podem hospedar uma vasta gama de materiais, como videoaulas, artigos e questionários, permitindo o aprendizado autodirigido. Esses sistemas podem rastrear o progresso do aluno e fornecer análises de aprendizado para identificar áreas de dificuldade. Além disso, a integração de conteúdo multimídia, como vídeos de procedimentos, pode melhorar significativamente a compreensão e a retenção.

Uso de Mídias Sociais e Podcasts para Educação

As mídias sociais, como Instagram, YouTube e TikTok, são plataformas populares entre os estudantes de medicina e podem ser aproveitadas para disseminar conteúdo educacional de forma rápida e envolvente. Vídeos curtos (shorts) demonstrando uma técnica de exame ou um podcast discutindo os desafios do currículo oculto na transição para a residência podem alcançar um público amplo e promover discussões. Estudos mostraram que o conteúdo de vídeo de curta duração gera maior engajamento.

Realidade Aumentada (RA) e Realidade Mista (RM)

 A RA sobrepõe informações digitais ao mundo real, oferecendo um potencial significativo para o treinamento de procedimentos. Por exemplo, um aplicativo de RA pode guiar um aluno através dos passos da punção intravenosa, exibindo hologramas e instruções passo a passo em um manequim ou mesmo em um paciente real sob supervisão. Um estudo descobriu que o treinamento em RA era comparável ao ensino tradicional presencial para essa habilidade. A RM, por sua vez, permite uma interação mais complexa com objetos virtuais no ambiente físico, sendo promissora para o planejamento cirúrgico e o treinamento de habilidades operacionais.

A utilização estratégica dessas plataformas e recursos não apenas torna o aprendizado mais acessível e flexível, mas também mais alinhado com as preferências de aprendizagem da nova geração de profissionais de saúde, preparando-os para um ambiente clínico cada vez mais digital.

Sinapses ou zeros-e-uns para a educação em emergência?

A tecnologia vem ampliando a gama de possibilidades para revolucionar o ensino de emergência, indo muito além da simulação tradicional. Ao abraçar a aprendizagem personalizada, a gamificação, as ferramentas de apoio à decisão, o treinamento de comunicação com avatares e o uso criativo de plataformas digitais, educadores podem criar um ambiente de aprendizado mais eficaz, envolvente e adaptável. Esses cinco temas podem sugerir melhorias para um currículo de emergência que não apenas transmita conhecimento, mas também cultive o raciocínio crítico, a colaboração, a resiliência e a literacia digital.

É fundamental ratificar que o futuro da formação em emergência não é substituir o educador humano pela IA, mas em capacitá-lo com ferramentas tecnológicas que amplificam seu impacto, preparando uma nova geração de profissionais de saúde para enfrentar os desafios mais críticos com confiança e competência. A integração cuidadosa e ética dessas tecnologias será a chave para desbloquear todo o seu potencial e garantir que a inovação sirva ao objetivo final: melhorar o atendimento ao paciente.

Fotografia de uma conferência em auditório, com iluminação em tons de vermelho e cenário contendo recortes estilizados de prédios em frente ao palco. No telão é projetado um slide com o título “INNOVATION IN LEARNING” e uma lista de tópicos: Mais foco em habilidades colaborativas, adaptativas e de resolução de problemas, menos em transferência de conhecimento Treinamento em tecnologia/big data/IA Aprendizagem por simulação Aprendizagem interprofissional, por exemplo, comunidades de aprendizagem Educação baseada em evidências À direita do slide, há duas setas pretas apontando para baixo e a foto de um robô de aparência simpática com olhos digitais azuis, acompanhada do texto “TONNIE, YOUR NEW COLLEAGUE?!”. No canto inferior direito do palco, uma pessoa está em pé atrás de um púlpito, apresentando a palestra.
Sessão da AMEE abordou pontos como foco em habilidades adaptativas e educação baseada em evidências
Ir para o topo