
A palavra “narrativa” tem sido usada em contextos tão diversos e com sentidos tão distintos que, à primeira vista, a expressão “Medicina Narrativa” pode causar estranhamento. Vale, de saída, esclarecer o que ela não significa. Não se trata da ideia difusa de “narrativa pessoal”, frequentemente associada a relatos subjetivos e de difícil verificação. Tampouco tem relação com a “disputa de narrativas”, expressão hoje comum para descrever impasses políticos em que não há escuta mútua nem disposição para o diálogo. Menos ainda se refere à ideia de “construir uma narrativa”, como sinônimo de criar versões parciais ou manipuladas da realidade.
A Medicina Narrativa é uma proposta desenvolvida a partir dos trabalhos da médica e pesquisadora Rita Charon, da Universidade de Columbia, que busca ampliar os recursos comunicativos e interpretativos com que contam os profissionais da saúde. Ao lado do conhecimento técnico e científico, ela enfatiza a importância de ouvir com atenção as histórias de vida dos pacientes, reconhecendo que a experiência da doença não se resume a um conjunto de sintomas, exames e diagnósticos. Essa abordagem não se opõe à medicina baseada em evidências, mas a complementa, ao considerar os significados atribuídos ao adoecimento, os vínculos afetivos envolvidos, os contextos sociais e as múltiplas formas pelas quais os pacientes narram o que vivem, considerando os aspectos sociais, culturais e emocionais que afetam a experiência. Ao valorizar a narrativa pessoal, a relação entre médico e paciente se fortalece, ao apoiar-se não apenas sobre o saber técnico, mas também sobre a confiança e a colaboração. Isso favorece a adesão ao tratamento e permite intervenções mais ajustadas à realidade de cada pessoa, favorecendo um cuidado mais efetivo e significativo. Assim, a Medicina Narrativa contribui para que médicos compreendam melhor quem é a pessoa diante deles e não apenas como seu corpo funciona (ou não).
A presença das narrativas na disciplina Bases Humanas da Prática Médica, ministrada no primeiro ano do curso de medicina da FCM-Unicamp, não tem caráter meramente ilustrativo ou complementar: ela está no centro da proposta formativa. Ao promover o contato dos estudantes com histórias diversas — literárias, orais e clínicas —, espera-se desenvolver competências fundamentais à prática médica, como a escuta atenta, a interpretação situada e a compreensão da singularidade da experiência do adoecimento. Mais do que passar ensinamentos sobre diferentes tipos de narrativa, busca-se expor os alunos a modos distintos de narrar e interpretar, provocando deslocamentos de perspectiva e desnaturalizando formas de escuta cristalizadas na formação biomédica.
Apesar de frequentemente associada ao desenvolvimento da empatia, a Medicina Narrativa não se ancora na ideia de que bastaria “sentir com o outro” para estabelecer uma boa relação médico-paciente. O conceito de empatia, embora relevante, mostra-se insuficiente para dar conta da complexidade dessa relação. Em muitos casos, o que separa médicos e pacientes não é a ausência de empatia, mas a presença de afetos difíceis de reconhecer ou sustentar. Por exemplo, o encontro com alguém proveniente de uma comunidade cujo sistema de crenças sobre a doença e sobre a cura colide com o modelo de um médico, que se apoia exclusivamente em evidência científica e experiência clínica, pode fazer com que ambos se sintam pouco apreciados, desconsiderados e, portanto, desgostosos um do outro.
Além disso, pessoas empáticas também temem a morte, sentem-se chateadas quando não são ouvidas e vivenciam uma gama de emoções que prefeririam não experimentar, como frustração, raiva ou vergonha – ainda mais quando acontecem corriqueiramente. Para evitar emoções difíceis, corre-se o risco de evitar também o paciente em sua completude. Reconhecer esses afetos, refletir sobre eles e aprender a manejá-los criticamente é parte do que a Medicina Narrativa se propõe a fazer. Não se trata, portanto, de ensinar a “ter empatia”, mas de criar condições para que o encontro entre médico e paciente possa acontecer de maneira mais atenta e aberta à alteridade.
Nesse contexto, a leitura de textos de ficção se apresenta como uma ferramenta potente. Ler textos de ficção – carro chefe da Medicina Narrativa tradicional nos Estados Unidos – pode ser um caminho para elaborar sentimentos e experimentar o encontro com o outro, sobretudo se soubermos como ler, e discutirmos uns com os outros a respeito do que lemos.
Pessoas em geral — e talvez médicos em particular — nem sempre são hábeis para falar sobre momentos em que sentiram medo ou raiva da morte, impotência diante de uma situação específica, repulsa por alguém que necessita de cuidado. Isso pode ser constrangedor, parecer incompatível com a imagem idealizada da profissão ou exigir uma exposição de si mesmo para a qual ainda não se está preparado. No entanto, essas situações podem ser elaboradas se, em vez de falarem de si, os estudantes puderem falar do medo, da raiva, da impotência ou da repulsa vividos por uma personagem em uma história. Trata-se de um caminho menos arriscado, que protege as vulnerabilidades individuais e, justamente por isso, oferece um excelente campo de treino — para que, no futuro, seja possível se arriscar mais, se expor mais e, assim, construir conexões mais genuínas com os pacientes.
É justamente o que pode ocorrer na discussão de um romance como Estela a esta hora, de Natália Zuccala. Alunos de medicina dificilmente diriam que têm receio de atender crianças, que preferem não ir ao quarto de um paciente terminal, que se sentem desconfortáveis com a violenta pressão exercida pelos superiores hierárquicos na rotina de um hospital. Não na frente dos colegas, dos professores. Não em voz alta, para si próprios. Mas podem discutir o que pensam sobre as ações e o comportamento de Estela, a médica residente, que lida com todos esses problemas na narrativa. Podem acusá-la. Defendê-la. Sentir pena. Até mesmo pensar em modos de ajudá-la. E, quem sabe, um dia reagirão melhor diante de situações semelhantes. Nesse sentido, ler e discutir narrativas é também pensar a si mesmo e, portanto, de se desenvolver enquanto profissional e pessoa na conexão com os outros.
O valor das narrativas na formação médica não se limita à possibilidade de projeção afetiva ou elaboração emocional. Elas também exercitam a capacidade de compreender e interpretar pontos de vista distintos do próprio, de confrontar perspectivas inesperadas, de lidar com ambiguidades. O contato com narrativas que apresentam perspectivas diversas da do leitor é, assim, um exercício interpretativo essencial também para a clínica. Ajuda a perceber que os sentidos das histórias são múltiplos, variam conforme a inserção cultural de quem as conta, de quem as escuta, e das circunstâncias em que o relato é produzido. E mais: que toda compreensão é sempre filtrada por valores, experiências e formas culturalmente mediadas de ver o mundo. Gênero, raça, cultura, história de vida e inserção institucional moldam profundamente o que é dito, o que é vivido e o que é possível fazer. A atenção a esses elementos não nos afasta da prática clínica, mas nos aproxima dela com mais profundidade e responsabilidade. Essa percepção é fundamental para a formação médica, pois antecipa, em chave narrativa, os desencontros de sentido que frequentemente ocorrem nas consultas clínicas, quando o médico, munido de uma bagagem científica, encontra o paciente, portador de uma narrativa própria, construída a partir de outros códigos.
Desenvolver as chamadas “competências narrativas” — isto é, a capacidade de escutar com atenção, de reconstruir experiências e de se envolver verdadeiramente com os outros — permite praticar uma medicina que vai além da mera troca de informações entre um especialista e o público leigo. Isso porque, embora o compartilhamento de evidências científicas seja fundamental, ele não é suficiente e nem sempre é o mais decisivo. A Medicina Narrativa não se opõe à medicina baseada em evidências; ao contrário, contribui para sua aplicação mais efetiva, ao lembrar que essas evidências precisam ser interpretadas e adaptadas por pessoas, para pessoas, em contextos específicos e singulares.
Como ensinou Paul Ricoeur, é a atividade narrativa que permite ao homem apreender o caráter de passagem do tempo, relacionando passado, presente e futuro, e localizando-se nessa relação que permanece em contínuo trânsito. A narrativa se coloca como um recurso através do qual instituímos nossa vida na temporalidade humana, podendo anunciá-la e compartilhá-la.
Ao cultivar competências narrativas, não apenas se aprimoram as práticas clínicas: amplia-se também a capacidade de compreender a condição humana em toda a sua complexidade.