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Winnicott falava de funções materna e paterna, parafraseando-o, chamo de ‘função adulto’ a função genérica (tanto de homens como de mulheres) que diversos atores sociais deveríamos ter junto de nossos adolescentes para que eles pudessem atingir a maturidade emocional.

O termo adolescência foi cunhado recentemente. A palavra adolescência vem do latim adolescere, que significa crescer. Porém, este termo só passou a ser utilizado enquanto estágio do desenvolvimento humano em 1904, pelo psicólogo estadunidense Stanley Hall (1846-1924). Nos séculos XIX e XX, diversos acontecimentos sociais, culturais e políticos possibilitaram o estabelecimento da adolescência como período distinto no desenvolvimento humano.

A duração da adolescência tem mudado dependendo do local, do momento histórico e de fatores culturais variados. Assim como um jovem de 25 anos de classe média brasileira pode – normalmente e sem produzir muito estranhamento – ser considerado um adolescente, em Sierra Leona crianças de 10 anos eram recrutadas para serem soldados até pouco tempo atrás. 

No mundo ocidental contemporâneo, a extensão dos estudos formais por anos e a crise do mercado de trabalho (e, em muitas cidades, da moradia) têm provocado uma adolescência espichada que parece quase sem fim.

A professora do Departamento de Saúde Coletiva da FCM, Rosana Teresa Onocko-Campos, em caricatura pelo artista Lalo, 2023.
A professora do Departamento de Saúde Coletiva da FCM, Rosana Teresa Onocko-Campos, em caricatura da artista Lalo, 2023.

Por outro lado, no Sul global e nas classes populares, muitos jovens não conseguem atravessar esse período investindo no próprio desenvolvimento, pois precisam ajudar as suas famílias com o sustento. Fazem seus “corres” em cima de motocicletas adoidadas e arriscam a vida em cada farol. Outros, principalmente se negros e periféricos, são massacrados pela polícia a taxas estonteantes sem que nada pareça poder reverter essa situação no Brasil. 

Coloco essa contextualização para justificar que é difícil se falar da adolescência, como se esta fosse uma e única. Feita essa ressalva, vale a pena pensar de que se trata essa época da vida dos seres humanos no contemporâneo. 

Bem ou mal, a adolescência foi padronizada no Brasil pelo Estatuto da Criança e do Adolescente como ocorrendo entre os 12-18 anos, podendo ser estendida até os 21 anos de idade. Algumas questões que precisam ser enfrentadas nessa fase requerem particular atenção de pais, educadores e da sociedade em geral. 

Na primeira metade do século XX, Donald W. Winnicott chamou a atenção para a característica “normal” da rebeldia nesta fase da vida, ele destacava que questionamentos, pequenas transgressões e algumas brigas interpares podiam ter sentido e propiciar o amadurecimento psíquico desde que contidas pelos adultos e reconhecidas como agressões, de maneira a levar à instauração de gestos reparadores. Apreender a concertar coisas faz parte do amadurecer. Winnicott apontava que, nesse desafio, era um componente essencial que os adultos soubessem ‘limitar as agressões’ e que ‘sobrevivessem’ aos ataques juvenis. Para o psicanalista inglês, não haveria só uma situação problemática nessa característica do mundo juvenil, senão também – e sobretudo – um ato criativo e potencialmente transformador da sociedade. Contemporâneo do sucesso dos Beatles, Winnicott apontava que o surgimento do rock poderia ser um belo substituto das gangues e da guerra em um planeta que – naquele momento – parecia haver atingido a paz. 

Setenta, talvez oitenta anos depois poderíamos nos perguntar como enfrentamos essas questões hoje no mundo contemporâneo. 

No meu último livro, e a partir de dados de nossa pesquisa sobre violência, questiono se não estaremos vivendo no Brasil o que chamei de “falência da função adulto”. Me explico. Salvando algumas peculiaridades da sociabilidade brasileira, penso que essa problemática se estende a outros lugares e sociedades, como nos mostrou cruamente a popular série “Adolescência”.

Winnicott falava de funções materna e paterna, parafraseando-o, chamo de ‘função adulto’ a função genérica (tanto de homens como de mulheres) que diversos atores sociais deveríamos ter junto de nossos adolescentes para que eles pudessem atingir a maturidade emocional. 

Winnicott é taxativo: 

Que los jóvenes modifiquen la sociedad y enseñen a los adultos a ver el mundo de forma renovada; pero donde existe el desafío de un joven en crecimiento, que haya un adulto para encararlo. Y no es obligatorio que ello resulte agradable. En la fantasía inconsciente, esas son cuestiones de vida o muerte” (D. W. Winnicott, 1999, pp193. Original de 1971)

No capítulo que denominei “a função adulto: elo perdido da sociabilidade brasileira” (Onocko-Campos, 2024) busco mostrar como tem sido difícil para os nossos jovens encontrar adultos que os encarem – parafraseando Winnicott. Pais omissos ou carentes que só querem agradar aos filhos e não suportam dizer não; polícia e educadores violentos que apresentam a lei como sendo arbitraria ou impotente e que, no fundo, desejam um bando de ovelhinhas (e não de desafiadores jovens em crescimento). Destaco também a falsa sensação de companhia proporcionada pelas redes sociais que os deixam desprotegidos e na mais absoluta solidão.

Não vou me estender aqui nas possíveis explicações para essas configurações, muitas das quais podemos buscar nas falhas narcísicas desses adultos produzidas, por sua vez, por privações e/ou violências na infância. Fato que não é nada raro na história das famílias brasileiras, desde que a mudança social que incrementou a classe média é – historicamente falando – muito recente. Em muitas famílias de classe média se conta ainda a história da avó (ou bisa) que foi “caçada a laço”, ou de traços patriarcais violentos e silenciados que marcaram gerações. 

A complexidade dessa trama subjetiva que compõe o Brasil de hoje, inserida no momento planetário atual (de aquecimento global, redes sociais, inteligência artificial etc.) fazem que a vida dos adolescentes no contemporâneo não seja nada fácil. De nada serve que os comparemos com nosso próprio passado analógico. Eles habitam um presente hostil e se lhes apresenta um futuro distópico. Cuidar deles, proteger seu desenvolvimento é uma tarefa árdua e difícil, porém urgente. 

Na Residência Multiprofissional de Saúde Mental e Coletiva do Departamento de Saúde Coletiva – que tive a honra de criar e, até hoje, a alegria de coordenar – jovens psicólogos, terapeutas ocupacionais, enfermeiros e fonoaudiólogos apreendem em serviços comunitários de Saúde Mental e na Atenção Básica como produzir abordagens capazes de acolher essas demandas clínicas dos jovens a adolescentes cada vez mais prevalentes. 

É importante destacar que muitas vezes nem são os próprios adolescentes quem demandam. Aliás, é bem difícil que sejam os adolescentes quem espontaneamente peçam ajuda. Em geral, pais e educadores o fazem em seu nome. Isso cria mais uma camada de complexidade, pois nem sempre (quase nunca) aquilo que pais ou educadores nomeiam como problema coincide com a percepção dos jovens. 

Os adolescentes que pudemos escutar em nossa pesquisa e no nosso serviço público de psicanálise e matriciamento para situações de violência (Liame) nos dizem da necessidade de se sentirem ouvidos e respeitados, de momentos de força, mas também da imensa necessidade de proteção e apoio. 

A multiprofissionalidade desponta assim como indispensável para atender toda essa diversidade e complexidade. Articulações entre as diversas disciplinas e também a co-resposabilização de vários serviços e equipamentos são fundamentais para o sucesso das intervenções junto a adolescentes. Não raro, saúde, assistência social e educação são convocadas a intervir e o fazem sem se articular nem combinar as ações. Por meio do componente de apoio matricial intersetorial do Liame (RASEV), temos procurado articular redes exclusivas e inusitadas que levam em consideração – principal e primordialmente – as demandas e necessidades desses usuários e de suas famílias. Ressalto com isto que os fluxos predefinidos das políticas públicas são muitas vezes insuficientes para dar conta dessa sensível, delicada e complexa tarefa. 

Também merece ser ressaltada a relevância da formação multiprofissional desses jovens residentes para que possam experimentar a riqueza, mas também apreender a sobrelevar a aspereza que marca muitas vezes o diálogo interdisciplinar. Trabalhar em equipe e lidar com essas dificuldades sem negá-las, mas sem transformar a tarefa numa torre de Babel tem sido uma das nossas diretrizes fundamentais durante os últimos dez anos, desde que a residência foi criada em 2015. 


Bibliografia

  1. Onocko-Campos, Rosana. Comportamento antissocial nos jovens como sequela da privação: contribuições da clínica winnicottiana para as políticas públicas. In Revista Interfaces  DOI: 10.1590/1807-57622017.0315
  2. ______________, 2023. https://outraspalavras.net/outrasaude/em-busca-de-explicacoes-para-os-massacres-nas-escolas/
  3. ____________, 2024.  “A função adulto: elo perdido da sociabilidade brasileira”. In: Saúde Coletiva e Psicanálise: Interfaces 2. São Paulo: Editora Hucitec. 
  4. Winnicott, Donald W., 1999. Realidad y Juego. Tradução de Floreal Maziá. Barcelona: Ed. Gedisa. (original de 1971)
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