O psicanalista e professor da USP Christian Dunker esteve na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp para discutir as incidências do perspectivismo ameríndio, proposto pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, na psicanálise. O encontro foi promovido pelo LaPSuS – Laboratório de Psicopatologia: Sujeito e Singularidade, coordenado por Mário Eduardo Costa Pereira, professor do Departamento de Psiquiatria da FCM. O evento integrou o ciclo de seminários de 2025 do grupo, que tem como tema “Outras curas”.
Na abertura, Mário explicou que o seminário de Psicopatologia do Sujeito busca redefinir o campo da psicopatologia e da patologia em geral a partir de novos termos, deslocando o foco tradicional centrado na doença ou no transtorno. Segundo ele, o objetivo é repensar as práticas clínicas — não apenas as psicanalíticas, mas também as médicas em geral — considerando os impasses que impedem o sujeito de se realizar como sujeito de desejo no interior do laço social.
Em sua fala, Dunker propôs um percurso que atravessou a história do pensamento psicanalítico e antropológico, destacando o diálogo entre Lacan e Lévi-Strauss, e mostrando como o perspectivismo ameríndio — desenvolvido por Eduardo Viveiros de Castro, discípulo de Lévi-Strauss — oferece novas chaves para compreender o sujeito e a clínica. “Viveiros de Castro percebeu, ao estudar os povos ameríndios, que as formas de parentesco e as trocas simbólicas não seguem a lógica do totemismo ocidental, mas se organizam segundo outra ontologia, na qual todos os seres têm ponto de vista”, afirmou o psicanalista.

Segundo Dunker, essa concepção rompe com a distinção clássica entre natureza e cultura e desafia a própria estrutura do pensamento moderno. “O perspectivismo propõe uma visão em que rios, montanhas, animais e pessoas compartilham uma condição comum: todos têm perspectiva, todos são pessoas. Isso muda radicalmente o modo como pensamos a alteridade e a identidade”, explicou.
O professor também relacionou a proposta de Viveiros de Castro à psicanálise, aproximando o conceito antropológico de “equivocação controlada” da noção lacaniana de interpretação. “São duas línguas, duas culturas, dois mundos que não se tornam comensuráveis. A equivocação é o que nos permite traduzir sem apagar as diferenças — e é o mesmo princípio que Lacan usa para definir a interpretação psicanalítica nos anos 1970”, observou.
Para Dunker, o diálogo entre psicanálise e perspectivismo não se trata de substituição teórica, mas de uma abertura crítica e ética. “Não é trazer o pensamento ameríndio como um adorno exótico, mas reconhecer que há ali um outro modo de habitar o mundo, que pode nos ensinar sobre o sofrimento, o corpo e o cuidado. É um gesto de descolonização do pensamento — inclusive dentro da própria psicanálise”, destacou.

Ao final do encontro, Mário Eduardo Costa Pereira observou que a conversa terminou “num ponto muito fecundo e interessante”, ao colocar em discussão as crises que o perspectivismo introduz na psicanálise e a importância de reconhecer o mal-entendido como constitutivo das relações humanas. “A gente termina num ponto fértil, que é justamente esse da crise, da ambiguidade e da abertura para novos modos de pensar a clínica”, afirmou.
O evento contou com participação presencial e transmissão online, reunindo docentes, estudantes e profissionais interessados na interface entre psicanálise, antropologia e filosofia. Após a conferência, Christian Dunker participou de uma sessão de autógrafos de suas obras.
O convidado
Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (LATESFIP-USP) e analista membro do Fórum do Campo Lacaniano. Doutor e livre-docente pela USP, com pós-doutorado pela Manchester Metropolitan University, é também criador do canal Falando Nisso no YouTube e articulista da UOL Tilt. É autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (Annablume, Prêmio Jabuti 2012), Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma (Boitempo, 2015), Reinvenção da Intimidade (Ubu, 2017), O Palhaço e o Psicanalista (Planeta, 2018, com Cláudio Thebas), Uma Biografia da Depressão (Paidós, 2021), Lacan e a Democracia (Boitempo, 2022) e Lutos Finitos e Infinitos (Paidós, 2023).
Confira a transmissão completa:
