A Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp recebeu, no dia 3 de outubro, no anfiteatro Paulistão, diretor do Departamento de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde, Marcelo Kimati Dias, para a conferência “Política Nacional de Saúde Mental: Situação atual, desafios e caminhos futuros”. O evento foi promovido pelo Departamento de Psiquiatria e mediado pelo professor Paulo Dalgalarrondo.
Na abertura, Dalgalarrondo destacou a trajetória de Kimati — ex-aluno da graduação, residência e pós-graduação da Unicamp — e a importância de sua presença na instituição. Segundo ele, a conferência representa “um momento significativo para o debate sobre as políticas públicas de saúde mental, especialmente agora, quando o tema ganha novo impulso no país”.
Em sua fala, Kimati fez um panorama do cenário atual da política nacional, refletindo sobre os avanços, desafios e prioridades do Ministério da Saúde. Ele lembrou que o Brasil foi referência mundial com a reforma psiquiátrica e o movimento antimanicomial, mas que a rede precisa ser repensada diante das novas demandas da sociedade. “Vivemos um momento em que o sofrimento psíquico assume múltiplas formas”, afirmou. “O isolamento social, a desigualdade, a precarização do trabalho e o uso intensivo das tecnologias digitais estão mudando a forma como as pessoas adoecem e buscam cuidado”.
O diretor enfatizou que o grande desafio atual é modernizar a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) sem perder sua essência humanista. Ele defendeu a reintegração dos serviços ao SUS e a integração com a atenção primária, reforçando o caráter territorial da política. “Não se trata apenas de manter os CAPS abertos”, observou. “Precisamos garantir que funcionem com equipes completas, suporte técnico, dados qualificados e metodologias de avaliação”.

Kimati também comentou os esforços do Ministério para informatizar os serviços, permitindo acompanhamento em tempo real do funcionamento da rede e aprimoramento da gestão. Segundo ele, a nova plataforma digital, em fase de implantação, deve reunir informações sobre fluxos de atendimento, perfis de usuários e indicadores regionais. “Com dados consistentes, conseguiremos entender melhor as necessidades da população e planejar políticas públicas baseadas em evidências”, disse.
Outro ponto destacado foi o enfrentamento da medicalização excessiva e da dependência de psicotrópicos, fenômeno que cresce em diferentes faixas etárias. Kimati defendeu que a saúde mental deve priorizar estratégias não farmacológicas e comunitárias, com ênfase em promoção, prevenção e cuidado intersetorial. “O cuidado precisa continuar centrado no sujeito e no território”, afirmou, “mas incorporando tecnologia, qualificação profissional e uma atenção médica de melhor qualidade”.
Após a exposição, o público — formado por docentes, estudantes, gestores e profissionais da rede — participou de perguntas e respostas com o convidado.
Perguntas e respostas
Artur, trabalhador do CAPS AD Reviver de Campinas, iniciou as perguntas destacando a escassez de dados epidemiológicos nacionais e a falta de formação específica de profissionais, especialmente na enfermagem. Kimati explicou que está em andamento o primeiro inquérito nacional sobre saúde mental, em parceria com a Universidade Federal do Espírito Santo, que deverá apresentar resultados até meados de 2026. Ele observou que a informatização dos CAPS também permitirá “acompanhar melhor o número de usuários, os fluxos de atendimento e as práticas desenvolvidas nos serviços”. O diretor acrescentou que o Ministério tem ampliado programas de residência e bolsas para formar mais psiquiatras e qualificar as equipes da rede.

Paulo Mariante, presidente do Conselho Municipal de Saúde de Campinas, levantou duas questões: a estagnação da expansão da RAPS e a convivência de políticas divergentes dentro do governo federal, citando o apoio a comunidades terapêuticas. Kimati reconheceu a contradição e afirmou que “a política de saúde mental precisa recuperar seu papel de oferecer alternativas públicas ao cuidado em liberdade”. Segundo ele, o Ministério trabalha na reformulação da portaria das unidades de acolhimento, para permitir a criação de dispositivos públicos em cidades pequenas — onde hoje há maior presença das comunidades terapêuticas — e fortalecer os vínculos com os CAPS.
O professor Luís Fernando Tófoli, do Departamento de Psiquiatria da FCM, perguntou sobre a falta de protocolos e diretrizes para práticas não farmacológicas nos transtornos mentais comuns, como mindfulness e atividade física. Kimati respondeu que o Ministério da Saúde pretende lançar manuais de boas práticas voltados à atenção primária e ampliar o número de equipes multiprofissionais (eMultis). “Não basta colocar coisas novas para fazer”, disse, “é preciso colocar gente para fazer, com qualificação e acompanhamento permanente”.
A psiquiatra Maria Teresa, aluna de pós-graduação da FCM, abordou a escassez de serviços e leitos para crianças e adolescentes. Kimati informou que o Ministério está finalizando a portaria que regulamenta os CAPS 24h infantojuvenis, com estrutura adequada e custeio maior. “Esses serviços terão de funcionar com equipes capacitadas, respeitando as normas do Estatuto da Criança e do Adolescente e articulando-se com as redes regionais de cuidado”, explicou.
O professor Mário Pereira, também da Psiquiatria, questionou os efeitos sociais dos diagnósticos psiquiátricos, cada vez mais usados como forma de identidade e pertencimento. Kimati refletiu que o fenômeno “vai além da saúde mental” e envolve a forma como as pessoas se reconhecem e se organizam socialmente. “Hoje, muitas relações se constroem a partir de categorias médicas”, observou. Ele defendeu que o Estado desenvolva estratégias de comunicação que valorizem o sujeito “para além do diagnóstico”, sem negar a importância da atenção especializada.

O aluno Williams, do curso de Medicina da FCM, perguntou sobre o impacto das apostas virtuais e bets na saúde mental. Marcelo Kimati respondeu que o problema com jogos é um fenômeno recente e crescente, que exige novas estratégias da política pública. Ele citou a experiência de um psicólogo do Nordeste que realiza atendimentos a jogadores pelo Telegram, inspirando a criação de uma linha de cuidado com porta de entrada digital. “A cena de uso do jogador é a internet, é o celular. Para acessá-lo, é preciso ir até essa cena de uso”, explicou. Segundo Kimati, a Rede de Atenção Psicossocial deve se adaptar à realidade virtual: “Não adianta mais do mesmo”.
Ao encerrar o encontro, Paulo Dalgalarrondo agradeceu ao convidado e ao público pela participação. “Foi um diálogo extremamente enriquecedor, que reforça os laços entre a Unicamp e o Ministério da Saúde em prol do aprimoramento das políticas públicas de saúde mental”, concluiu.
Confira a íntegra da conferência: