
O manejo do câncer de tireoide passou por uma transformação radical nas últimas duas décadas, evoluindo de um protocolo único, centrado na cirurgia, para uma era de medicina de precisão com diagnósticos personalizados e terapias direcionadas. No entanto, em artigo publicado recentemente na Revista Nature Reviews Endocrinology, os professores Laura Sterian Ward (Unicamp) e Lucas Leite Cunha (Unifesp) alertam que os benefícios desses avanços não estão sendo distribuídos igualmente, criando um abismo entre países ricos e pobres, no cuidado dos pacientes.
Leia o artigo da Nature, na íntegra, aqui.
Segundo explica Laura Ward, docente da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, a transformação no tratamento do câncer de tireoide foi impulsionada por avanços em múltiplos domínios, incluindo modalidades aprimoradas de diagnóstico por imagem, interpretação assistida por inteligência artificial (IA), protocolos refinados de vigilância ativa, técnicas de ablação minimamente invasivas e perfilamento genômico. Tal integração contínua de algoritmos de tratamento personalizados promete melhorar ainda mais os desfechos dos pacientes. O sobrediagnóstico, nesse sentido, tem sido um dos maiores desafios.
“A popularização de ultrassonografias de alta resolução levou à descoberta de um número cada vez maior de nódulos, muitos deles pequenos e de baixo risco (microcarcinomas papilíferos), que provavelmente nunca causariam sintomas. Esta “epidemia de diagnóstico”, frequentemente, resulta em cirurgias desnecessárias e tratamentos agressivos”, discute a docente da FCM na publicação.

Coautor do artigo, o professor da Escola Paulista de Medicina da Unifesp, Lucas Cunha, aborda os impactos negativos de intervenções mais agressivas no manejo de situações clínicas que nunca causariam sintomas ou morte dos pacientes, afirmando que além de não melhorarem os desfechos dos casos, ocasionam consideráveis ônus físicos, psicológicos e econômicos. A solução veio de um estudo japonês pioneiro, que mostrou que monitorar ativamente microcarcinomas de baixo risco é uma estratégia segura e eficaz.
“Esse estudo desafiou o dogma de que todo câncer deve ser operado imediatamente. Como o primeiro grande ensaio prospectivo neste domínio, o estudo não apenas desafiou o dogma da intervenção cirúrgica universal, mas também estabeleceu a vigilância ativa como uma abordagem terapêutica válida. Para pacientes que desejam um tratamento definitivo sem a cirurgia, técnicas de ablação por radiofrequência ou laser surgiram como alternativas eficazes, com menos efeitos colaterais”, conta..
Os especialistas da Unicamp e Unifesp explicam, também, que a IA tem sido uma ferramenta importante de auxílio médico na diferenciação de nódulos benignos de malignos com precisão ao combinar a análise de imagens com o perfil genético dos pacientes.
“Esta abordagem integrada, fundindo perfilamento de risco genômico com análise de imagem avançada, representa um avanço notável no diagnóstico de precisão para nódulos tireoidianos”, apontam Laura e Lucas na publicação da Nature.
O artigo mostra, ainda, que nos casos mais avançados e agressivos, como o câncer anaplásico de tireoide, os avanços foram ainda mais dramáticos. Novas drogas-alvo, como o lenvatinibe e inibidores de RET (selpercatinibe e praisetinibe), revolucionaram o tratamento de tumores que antes tinham pouquíssimas opções.
“Essas abordagens direcionadas, molecularmente, exemplificam a tradução bem-sucedida de descobertas genômicas em intervenções clinicamente significativas, oferecendo nova esperança para pacientes com doenças previamente refratárias ao tratamento”, destacam.
Apesar do otimismo, os pesquisadores alertam que o acesso a essas inovações transformadoras é profundamente desigual. Enquanto países de alta renda lidam com o excesso de diagnóstico, nações de baixa e média renda enfrentam a falta de acesso às tecnologias mais básicas.
“As tecnologias que estão revolucionando os resultados em países de alta renda, como imageamento de alta resolução, perfilamento molecular e terapias direcionadas, permanecem desproporcionalmente indisponíveis em regiões com recursos limitados, perpetuando disparidades substanciais nos resultados em todo o mundo”.
O caminho ideal no cuidado do câncer tireoidiano é o que alia inovação tecnológica à equidade de acesso, garantindo que o cuidado baseado em evidências e personalizado ao paciente seja universalmente acessível em diversos contextos de saúde. O futuro, concluem Laura e Lucas, está na integração de todos esses dados – genéticos, de imagem e clínicos – por meio de plataformas de IA sofisticadas, para oferecer o melhor tratamento possível para cada indivíduo, em qualquer lugar do mundo.