
Por Fernando Costa, professor do Departamento de Clínica Médica da FCM
O texto não representa a opinião ou posicionamento da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
A evolução da educação superior no Brasil nos últimos anos indica mudanças importantes com crescimento significativo no número de alunos, porém com pouco ou nenhum critério de avaliação de qualidade ou planejamento estratégico perceptível. Os dados do censo geral do Brasil de 2022 demonstram um grande aumento do número de alunos no ensino superior, mas também indicam uma série enorme de problemas a serem resolvidos. A percentagem da população brasileira com ensino superior completo praticamente triplicou, indo de 6,8% para 18,4% entre 2002 e 2022. Além disso, a proporção de brasileiros com idade entre 25 e 34 anos com ensino superior completo atingiu 23,7% em 2022. Embora este percentual seja inferior à média dos países da Organização para Cooperação de Desenvolvimento Econômico (OCDE), que é de 47,2%, ou do Chile (40,5%), ou da Colômbia (34,1%) mostra um crescimento significativo nas últimas duas décadas. A análise pormenorizada destes números, no entanto, deixa à mostra grandes problemas para o ensino superior em nosso país. Por exemplo, a área que concentra o maior número de pessoas com curso superior concluído é a de negócios, administração e direito que perfazem um total de 8.408.722 pessoas, ao passo que os formados em engenharia, produção e construção alcançam apenas 2.371.066 pessoas (o total de pessoas com curso completo foi de 25.854.290). Outro fator importante é que o grande incremento no número de alunos no ensino superior ocorreu de maneira concomitante ao aumento de cursos de educação à distância (EAD), isto é, não-presenciais e que provavelmente apresentam limitações quando comparados aos cursos presenciais. Os dados disponíveis hoje no Brasil mostram que em 2023 existiam 5,06 milhões de estudantes matriculados em cursos presenciais no ensino superior e 4,91 milhões matriculados em cursos EAD. Como comparação, em 2013 havia 6,15 milhões em cursos presenciais e apenas 1,15 milhões em EAD. Além disso, 79,3% desses alunos frequentam instituições privadas que, em sua maioria, visam lucros (existem, claro, exceções, principalmente entre universidades confessionais, comunitárias e filantrópicas) e apenas 20,7% estão em instituições públicas.
Neste contexto, a observação das mudanças nos últimos 10 a 20 anos na educação médica (em relação ao número de alunos e a criação de novas escolas de medicina) apontam para uma evolução completamente inesperada e surpreendente. Ainda que possam ser discutidos alguns aspectos do número de médicos necessários para um país como o Brasil, além de como deveria ser sua distribuição ideal nas diferentes regiões do país, o enorme aumento do número de escolas médicas e o aumento exponencial do número de médicos formados na última década indicam um crescimento desordenado e sem nenhum tipo de planejamento. Mais recentemente houve tentativas do governo federal de disciplinar a instalação de novas escolas médicas com base em certos critérios, como por exemplo a distribuição regional dos profissionais formados, mas o grande número de escolas já instaladas e a judicialização na criação dessas novas escolas impedem qualquer tipo de organização racional dessa expansão. De acordo com o Censo de Educação Superior de 2023, existem no Brasil 389 cursos de medicina. No mundo este número é inferior apenas ao número de cursos existentes na Índia, cuja população é 6,6 vezes maior que a brasileira. Além disso, estima-se a existência de 294 processos de cursos de medicina em vias de serem iniciados e em tramitação na Secretaria de Regulação e Supervisão de Educação Superior do Ministério de Educação do Brasil por ordem administrativa ou decisão judicial. O número de médicos ativos quase dobrou entre 2010 e 2024, passando de 304.406 para 575.930 segundo o Conselho Federal de Medicina. Este aumento desordenado de escolas médicas (210 cursos abertos nos últimos 14 anos), como certamente poderia ser previsto, não foi acompanhado por avaliação abrangente e rigorosa da qualidade dos novos cursos. Embora não existam dados amplamente disponíveis e comprovados, múltiplas evidências apontam para qualidade deficiente na maioria dessas novas escolas médicas. Também entre essas novas escolas médicas, grande parte é privada (mais de 70%) com pouca contribuição de novas escolas médicas públicas. Além disso, merece ser mencionado que embora existam exceções a maioria dessas escolas médicas tem origem em grandes conglomerados privados e quase sempre visam lucro. Apenas para ilustrar este fato, vale a pena repetir aqui uma pequena nota que foi publicada em uma revista semanal (Veja, no 2934, de 7 de março de 2025, pág. 44): “Educação lucrativa: … um gestor de investimento com participações em um fundo soberano de determinado país segue investindo no Brasil em faculdades de medicina. Nos últimos anos foram cinco aquisições – e vem mais por aí. O negócio tem alta margem de lucro e baixa taxa de desistência dos alunos”.
Segundo o Conselho Federal de Medicina, em 78% dos municípios que abrigam escolas médicas faltam leitos hospitalares para que o ensino seja adequado; em 57% não existem hospitais de ensino, e em grande parte dessas novas faculdades existe carência generalizada de professores com doutorado e com proficiência comprovada para ministrar o curso médico. É claro que deve sempre ser mencionado que existem algumas poucas exceções. No entanto, as consequências da presumível degradação do ensino médico no país são de tal gravidade para a população que existe um projeto de lei no Congresso do país proposto com participação do Conselho Federal de Medicina para que seja implantado um exame nacional de proficiência em medicina, a exemplo do que existe em grande parte dos países desenvolvidos, com o objetivo de realizar avaliação rigorosa e independente da proficiência dos médicos hoje formados no Brasil.
Um aspecto muitas vezes pouco discutido desse aumento desordenado do número de médicos formados é a consequência que este fato acarreta para a formação dos médicos nas diversas especialidades médicas. Não por acaso em 2024 foram formados em todo o Brasil 27.263 (sem contar aqueles formados no exterior e que por uma razão ou outra são credenciados para aqui atuar), mas foram ofertadas somente 16.189 vagas de residência médica no país. É possível estimar que em um futuro próximo haverá 40.000 médicos formados a cada ano e somente encontrarão vagas para residência menos que a metade dos formandos.
Esta escassez de vagas de residência médica teve como consequência um novo tipo de atividade educacional no Brasil: o surgimento e crescimento vertiginoso de os assim chamados cursos de pós-graduação “lato sensu” ou cursos semelhantes a especialização médica. Tendo em vista os dados compilados pela Faculdade de Medicina da USP e a Associação Médica Brasileira (AMB), na publicação “Demografia médica no Brasil”, há aproximadamente 2.000 cursos de pós-graduação “lato sensu”: 927 são presenciais, 800 (40%) são cursos à distância, e 216 (11%) são na modalidade semipresencial. Estes cursos são em sua quase totalidade oferecidos por instituições privadas. De fato, existe um certo tipo de “disputa” entre as instituições de ensino privado ou mesmo grandes hospitais, principalmente privados, para oferecer múltiplas oportunidades de algum tipo de especialização médica muitas vezes colocadas como complementação à residência médica, mas cada vez mais atingindo profissionais sem residência médica.
Importante esclarecer que esses cursos de especialização, ou cursos de pós-graduação “lato sensu”, em contraste com a residência, podem ser presenciais, híbridos ou integralmente EAD e, em geral, tem carga horária mínima de 360 horas (em geral ofertadas em dois anos). Embora sejam obrigatórios o credenciamento da instituição que vai ministrar o curso junto ao MEC e o fornecimento das informações gerais do curso, sua oferta não depende do aval ou reconhecimento do governo. Aproximadamente 90% desses cursos são inteiramente custeados pelos alunos. Os cursos de pós-graduação oferecidos com maior frequência são endocrinologia e metabologia; dermatologia, psiquiatria, radiologia e hematologia e hemoterapia.
Talvez seja necessário neste ponto um esclarecimento a respeito de como são formados os médicos especialistas no Brasil. Como já mencionado, após o curso regular de medicina em faculdades homologadas pelo Ministério da Educação, o médico após a graduação pode atuar em áreas clínicas, como por exemplo, na atenção primária e em medicina da família. Aparentemente, poucos países permitem que isto possa ocorrer sem um exame independente de proficiência prévio e sem a realização de residência médica, a não ser em circunstâncias excepcionais, mas no Brasil isto ocorre. Desta forma, residência médica ou especialização médica não são obrigatórias no país.
Como então são formados os médicos especialistas no Brasil?
Como regra geral, pela realização da residência médica reconhecida e aprovada pelo governo federal. A residência médica é obrigatoriamente presencial, com carga horária mínima de 2,8 mil horas (compreendendo dois a cinco anos de atividade) distribuídas em cerca de 60 horas semanais com atividades teóricas, práticas e plantões. Os programas e os currículos devem ser aprovados pela Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM) (Ministérios da Educação e da Saúde) que avalia a estrutura física, qualidade e quantidade do corpo de instrutores, programa pedagógico e capacidade de oferta de atendimento médico adequado à formação especializada. Os residentes recebem bolsa de estudo padronizadas pela CNRM, fornecidas pelo governo no caso de hospitais públicos ou eventualmente pelos próprios hospitais quando privados. Aqueles aprovados nas residências médicas são considerados aptos a exercerem a especialidade respectiva em órgãos e carreiras oficiais do Estado brasileiro.
No entanto, o Conselho Federal de Medicina e a Associação Médica Brasileira (AMB) exigem uma prova adicional para outorgar o título de especialista reconhecido por essas entidades. Desta forma, para receber o título de especialista após a residência, o médico deve ser aprovado no exame de especialidade que é realizado pela associação da especialidade médica reconhecida pelo AMB. Assim, o título de especialista aprovado pela AMB é somente obtido após a residência médica e após aprovação no exame realizado pela associação médica da especialidade reconhecida pela AMB. No entanto, esta regra não é absoluta e estão previstas certas exceções que podem levar a obtenção do título de especialista sem residência médica. Como já mencionado, somente existem vagas para residência médica para cerca de metade dos médicos formados no Brasil, o que acarretará como consequência previsível no futuro uma grande procura para obtenção alternativa do título de especialista sem a realização da residência médica. Não por acaso, a simples consulta na internet mostra muitas publicações de instituições de ensino médico onde constam instruções de como obter o título de especialista sem fazer residência médica. Em geral, as exigências para quem não fez residência médica incluem ter concluído um curso de especialização “lato sensu” e/ou a comprovação de um certo tempo mínimo de atividade na especialidade (em geral dois a cinco anos) em algum tipo de estágio em programa “reconhecido pela associação da especialidade ou AMB”. Neste contexto, os cursos de pós-graduação “lato sensu” ganham importância enorme, pois, apesar de claramente não substituírem os cursos de residência médica, passam a ser oportunidades para obtenção de título de especialista, tendo em vista as exceções previstas.
Em algumas dessas especialidades o número de títulos de especialista obtidos por médicos que não realizaram a residência médica parece já ter hoje incremento significativo, embora não existam dados disponíveis confiáveis. No entanto, não seria absurdo prever, que devido ao grande número de médicos que não conseguem realizar a residência médica, e o grande aumento de número de cursos de pós-graduação “lato sensu” oferecidos, este caminho alternativo à formação de especialistas no Brasil tende a crescer de maneira importante. Em minha opinião, este é um risco muito grande que poderia levar todo o processo de formação de especialistas a uma crise grave, sem precedentes na história da medicina brasileira. Existe grande esperança que a AMB, analise cuidadosamente o problema e leve a efeito as ações necessárias para não permitir a formação de especialistas sem residência médica no Brasil.
Referências:
- Academia Brasileira de Ciências. Um olhar sobre o ensino superior no Brasil. Novembro de 2024.
- Isabela Moya. Porque faltam vagas de residência médica e cresce o número de pós-graduações em Medicina no Brasil. Estado de São Paulo, 30/01/2025
- Faculdade de Medicina da USP e Associação Médica Brasileira (AMB): Demografia Médica no Brasil. 2025
- Fabrícia Marques. Formação Remota. Revista Pesquisa FAPESP. 348: 12-19,2025
- Associação Brasileira de Hematologia e Hemoterapia (ABHH). Edital: Exame Nacional para obtenção do título de especialista em Hematologia e Hemoterapia. 12/03/2025
- Ocimara Balmart. Faculdades ligadas a hospitais aproximam especialização da rotina. O Estado de São Paulo, 27 de fevereiro de 2025.
- José Hiran Gallo. Medicina de qualidade e exame de proficiência. O Estado de São Paulo, 28 de fevereiro de 2025.
- Editorial – Blood LATAM – “in press” – “Quantos hematologistas sem residência médica teremos no Brasil nos próximos anos?”