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Ano 2025, Volume 13, nº 5: Saúde da população negra Editorial

Racismo como determinante social da saúde mental da população de estudantes negros na universidade

Quando pensamos na questão do racismo e seus impactos na saúde mental de estudantes universitários negros, é importante considerarmos a existência do racismo institucional, entendido como discriminação racial que se manifesta nas normas, políticas e práticas de instituições públicas e privadas, resultando em desigualdades sistemáticas, mesmo que de forma sutil. Trata-se de uma forma de preconceito que não depende necessariamente da intenção individual, mas que é perpetuada pelas próprias estruturas e dinâmicas das organizações, como na falta de representatividade negra em espaços de prestígio na universidade, como, por exemplo, na docência ou em cargos de liderança.

Contexto histórico das cotas etnicorraciais no Brasil

Vale recapitular a história da exclusão da população negra no sistema educacional brasileiro. Em 1837, a primeira legislação de educação no Brasil (Lei n.º 1) proibiu negros escravizados e libertos de frequentar escolas públicas no Rio de Janeiro. Essa lei reforçou a exclusão educacional e o racismo estrutural, impediindo o acesso de pessoas negras à instrução formal mesmo antes da Lei Áurea. Somente a partir da lei de 1854 determinou-se que as escolas públicas deveriam aceitar estudantes de qualquer cor, desde que fossem libertos.

As primeiras instituições de ensino superior no Brasil foram criadas em 1808, com a chegada da família real. Foram criadas a Escola de Cirurgia da Bahia e a Escola de Medicina do Hospital Militar do Rio de Janeiro, ambas focadas em formar profissionais para a administração pública. Em 1810, foi criada a Academia Real Militar, que posteriormente se tornaria parte da Escola de Engenharia da UFRJ. No ano de 1827, foram fundadas as primeiras faculdades de direito, em Olinda (PE) e São Paulo (SP), com o objetivo de formar juristas para a nova nação. A escravatura foi abolida em 1888, quase um século depois da criação dessas instituições, e não foi acompanhada de políticas de reparação e inclusão das pessoas negras na sociedade. Em sua origem, o espaço de ensino superior foi interditado à população negra, e isso perdurou até a redemocratização no Brasil, quando movimentos sociais pautaram a questão, o que resultou em políticas de ações afirmativas.

As Políticas de Ações Afirmativas podem ser consideradas medidas importantes no acesso à educação universitária. Seu principal objetivo é a reparação histórica direcionada a grupos sociais que historicamente foram oprimidos e tiveram seus direitos sistematicamente violados. Trata-se de uma medida que incide sobre as desigualdades de oportunidades, visando ao enfrentamento das reproduções de violências estruturais advindas do passado colonialista e escravocrata do Brasil, que se fazem presentes nas dimensões sociopolíticas, culturais, econômicas, subjetivas e relacionais. Nesse sentido, as cotas são um mecanismo de combate às desigualdades sociais que visa à transformação equânime da sociedade, incidindo sobre o racismo estrutural.

A primeira universidade a adotar a reserva de vagas com critérios etnicorraciais foi a UnB, em 2004. Em 2012, o STF reconheceu a constitucionalidade das cotas e, no mesmo ano, as Universidades Federais expandiram o acesso para pessoas oriundas de escolas públicas, com recortes para pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência. Em 2023, a reserva de vagas foi ampliada para estudantes quilombolas. As últimas universidades públicas a aderirem às reservas de vagas etnicorraciais foram a Unicamp e a USP, em 2017, a partir de reivindicações de movimentos sociais negros e greve discente.

Os dados do Censo do IBGE de 2022 revelam que, de 2000 a 2022, o percentual de brasileiros negros que concluíram a graduação no Brasil cresceu significativamente. Em 2000, 2,4% da população parda e 2,1% da população negra haviam completado o ensino superior no país, ao passo que em 2022 os percentuais subiram para 12,3% e 11,7%, respectivamente. Apesar do crescimento mais expressivo de pessoas negras em comparação com a população geral, que tinha 6,8% de pessoas com nível superior em 2000 e 18,4% em 2022, os indicadores ainda apontam para a desigualdade racial nas universidades brasileiras.

Embora haja crescimento de pessoas negras no ensino superior, o percentual de pretos e pardos ainda é a metade ao comparado com o de pessoas brancas (28,5% possuíam graduação completa em 2022), e a população negra segue com maior evasão e menor presença nas carreiras mais concorridas.

A maior diversidade nas universidades é, portanto, um acontecimento recente na história do país, que se reflete em efeitos benéficos à democracia e à sociedade brasileira. Ao longo de tal processo, estudantes negros se deparam com desafios específicos referentes ao enfrentamento do racismo institucional e estrutural na trajetória acadêmica. Abordaremos a seguir um tópico sensível nesse processo, que diz respeito à saúde mental dos estudantes universitários negros.

Contexto de saúde mental da população negra

O debate sobre a saúde mental dos estudantes universitários negros é um tema que tem ganhado mais abertura nos últimos anos, acompanhado por uma maior sensibilização social na discussão da temática racial. O que há pouco tempo não era dito aparece atualmente em um contexto de urgência e preocupação no que diz respeito à complexidade da situação, todavia, ainda sem um debate consolidado e com pouca literatura produzida sobre a temática.

A contribuição que podemos compartilhar neste texto parte da nossa experiência clínica de atendimento em saúde mental no Sappe (Serviço de Assistência Psicológica e Psiquiátrica ao Estudante), que integra a Diretoria Executiva de Apoio e Permanência Estudantil da Unicamp.

Embora a trajetória universitária seja uma experiência singular de cada estudante, a marcação social da diferença etnicorracial produz determinações importantes no modo como o racismo atravessa a vivência acadêmica. É importante situar a heterogeneidade que compõe o grupo de estudantes negros e suas demais interseccionalidades produtoras de vulnerabilidades sociais, como gênero, classe, origem, deficiência, entre outras, o que implica no modo como as desigualdades operam na vida desses estudantes.

Podemos partir do pressuposto de que a universidade não foi projetada para pessoas negras e indígenas, haja vista o projeto de universidade no Brasil descrito acima. O simples acesso de estudantes negros e indígenas ao ensino superior não garante, em si, inclusão e acolhimento, tampouco pertencimento, que é um pilar fundamental do sucesso acadêmico. Parte do desafio institucional é se questionar como a universidade está se adaptando, ou não, a ser um espaço de acolhimento para a diversidade de sua comunidade. Nesse sentido, considerar que há uma expectativa padrão de performance acadêmica reduz as potencialidades de reconhecer os diversos repertórios, habilidades sociais e experiências dos estudantes. Logo, não acompanhar o “padrão” dos demais colegas pode ser um fator que impacta o sofrimento psíquico dos estudantes negros.

Além disso, a falta de representatividade na estrutura universitária, seja no corpo docente, na bibliografia (centrada no Norte global), na arquitetura ou no modo de sociabilidade, pode produzir um sentimento de não pertencimento dos estudantes negros e uma desconfiança na instituição, por não saberem se ela os compreende, e vice-versa. O estudante que não se vê representado não estabelece uma vinculação de identificação e pode se sentir deslocado ao se questionar se “está no lugar certo”.

Uma fala recorrente é que um estudante negro não representa apenas a si mesmo quando está na universidade, mas abarca uma coletividade e ancestralidade para além de si. Nesse sentido, é importante considerar as coletividades que compõem e que adentram a universidade junto com os estudantes. Por vezes, estudantes que são os primeiros da família a cursarem o ensino superior trazem consigo apoio, mas também uma pressão decorrente da expectativa que a família projeta sobre o estudante, de ascender a família socioeconomicamente. Além disso, pode haver falta de compreensão a respeito das diferentes lógicas de trabalho na academia, o que pode resvalar na pressão para que o estudante tenha um trabalho não acadêmico. Muitas vezes, a vulnerabilidade é determinante das condições de acesso e permanência, sendo que esta pode ser facilitada em famílias que não dependem do estudante como mão de obra assalariada ativa na renda familiar.

Outro ponto importante diz respeito à distância territorial da universidade de bairros periféricos, onde grande parte da população é negra. Sabe-se que o racismo opera na divisão espacial das cidades, tendo a segregação racial como uma marca que expressa a reprodução histórica da herança colonial. No Brasil, as universidades, em sua maioria, localizam-se em centros urbanos e em eixos centrais das cidades, demandando um longo trajeto para as pessoas que moram nas periferias, o que se apresenta como mais uma barreira que atravessa a vivência universitária dos estudantes. Tal distância não é apenas física, mas representa um projeto que expressa para qual público e para qual território as universidades foram concebidas, urgindo uma reflexão sobre a relação da universidade com os territórios.

Considerar que o conhecimento está em todo lugar e que este não pode ser hierarquizado por critérios coloniais tem sido um mote do movimento negro estudantil da Unicamp. Nas duas Assembleias dos Estudantes Negros de 2025, organizadas pelo Aquilomba Fórum, foi apresentada a pauta da Extensão Comunitária. Nessa proposta, desloca-se o lugar central da universidade como o único espaço de produção de conhecimento, de modo a reconhecer que a universidade pode e deve aprender com os conhecimentos que são produzidos nas quebradas. Nesse sentido, os saberes tradicionais e culturais são considerados como tecnologias sociais que trazem contribuições para o enfrentamento dos problemas da sociedade e complementam os saberes produzidos na academia. Trata-se de um movimento de valorização dos territórios, das epistemologias do Sul global e das comunidades, em confluência com premissas da educação popular e alinhado com o aquilombamento. Tal proposição do movimento negro estudantil revela uma postura implicada com a transformação não apenas individual dos estudantes matriculados na universidade, mas também estrutural da dinâmica de relações de poder e saberes.

A inclusão é um processo transversal e a diversidade é uma variável contínua (Rodrigues, 2025), que, para ser bem-sucedida, requer a participação e o engajamento dos diferentes agentes da comunidade acadêmica com apoio da instituição em diferentes níveis. A capacidade da universidade de acolher as diversidades e, com isso, proporcionar condições de pertencimento e de engajamento de diferentes grupos de estudantes define a qualidade da inclusão, que se reflete na potencialidade de originar criatividade, progresso e resolução de problemas. Tal compromisso define sua capacidade de combater as desigualdades e, com isso, reduzir o sofrimento imposto pelo racismo e discriminação não só de estudantes negros, mas também de outras populações diversas de estudantes.

Nos últimos anos, a Unicamp passou a assumir o compromisso visando a políticas antirracistas, como forma de enfrentamento ao racismo institucional. Além das Políticas Afirmativas, vale destacar o trabalho da Comissão Assessora de Diversidade Etnicorracial (Cader/DEDH) e do Serviço de Acolhimento e Encaminhamento Institucional das Denúncias de Racismo (SAER), que são essenciais para a garantia de direitos, promoção da equidade racial e agentes de transformação da cultura universitária. Entendemos que essas instâncias são estratégicas para a permanência estudantil e saúde mental dessa população.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CUNHA, Luiz Antônio. A universidade crítica: o ensino superior na República Velha. São Paulo: Editora UNESP, 2007.

GUERRA, Nathalia Ester Martins et al. O racismo institucional na universidade e consequências na vida de estudantes negros: um estudo misto. Ciência & Saúde Coletiva, v. 29, n. 3, p. 1-10, 2024.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo Demográfico 2022: Educação: Resultados preliminares. Rio de Janeiro: IBGE, 2025.

MS – MINISTÉRIO DA SAÚDE. Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde. Brasília, DF, 2008.

Leonardi, F. G., & Mendes Faustino, D. (2025). Racismo e sofrimento mental de estudantes negros na universidade – entrevista com Deivison Faustino. Olhares: Revista do Departamento de Educação da Unifesp, 13(1).

OLIVEN, A. C. Histórico da educação superior no Brasil. In: SOARES, M. S. A. (Org.). A educação superior no Brasil. Porto Alegre: Unesco, 2002.

RODRIGUES, D. A. (2025). Direitos e Deveres Humanos: Uma Agenda Humanista (Conferência proferida na Unicamp, a convite da Diretoria Executiva de Apoio à Permanência Estudantil).

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