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+ Ensino Ano 2025, Volume 13, nº 5: Saúde da população negra Boletim FCM (ISSN: 2595-9050)

Extensão e políticas públicas para a saúde da população negra

A saúde da população negra no Brasil representa um desafio para formuladores de políticas públicas, gestores e profissionais de saúde em virtude de ser essa parcela da população a que está mais sujeita a efeitos da desigualdade social e que apresenta maior morbimortalidade por agravos e doenças como hipertensão arterial sistêmica, acidente vascular encefálico, diabetes melito, tuberculose, HIV/AIDS, doença falciforme, homicídios e mortalidade materno-infantil, entre outros.

A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, lançada há mais de 15 anos, tem por objetivo promover a saúde integral desse segmento da população, priorizando a redução das desigualdades étnico-raciais, o combate ao racismo e à discriminação nas instituições e serviços do SUS. Contudo, tal documento permanece desconhecido ou é pouco visitado por grande parte de profissionais e usuários do SUS, estudantes da área da Saúde e até mesmo professores universitários.

O conteúdo dos currículos de inúmeras faculdades de medicina ainda carecem de reformas no sentido de incluir o ensino da saúde da população negra de forma mais explícita e significativa, pois, não raras vezes, ainda depende da militância e esforço individual de alguns poucos docentes e discentes engajados nessa batalha pela valorização desse tema, que afeta diretamente a maioria da população brasileira.

Estudo realizado em parceria entre o Departamento de Vigilância em Saúde da Secretaria Municipal de Saúde de Campinas e o Centro Colaborador em Análise de Situação de Saúde do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp (FCM/Unicamp) revelou grande discrepância na distribuição da população negra entre as áreas de abrangência das diferentes Unidades Básicas de Saúde do município. A maior parte da população negra reside em bairros localizados nas regiões Sul, Sudoeste e Noroeste da cidade, onde as condições socioeconômicas são piores em comparação à área central e região Leste.

Os estudantes de medicina da  FCM/Unicamp realizam estágios curriculares, quase que exclusivamente, em territórios nos quais a população negra representa menos de 50% do total, e, na maioria dos casos, apenas cerca de 30% ou 20%. É de se esperar que tenham poucas oportunidades de atender pessoas negras e, consequentemente, de desenvolver habilidades necessárias ao cuidado desse grupo populacional já tão prejudicado socialmente.

A extensão universitária, entendida como “processo interdisciplinar, educativo, cultural, científico e político que promove a interação transformadora entre universidade e outros setores da sociedade”, tem contribuído significativamente para colocar estudantes em territórios periféricos nos quais a população negra é a maioria. Isso oferece não apenas a oportunidade ao aluno de medicina para desenvolver a prática em saúde com pessoas negras, mas também contribui para aumentar o acesso à saúde dessa fatia da população, conforme discutido em Brasília, em 2024, quando o Ministério da Saúde convidou Pró-Reitores de Extensão das Instituições de Ensino Superior Brasileiras para discutir como as universidades poderiam contribuir com o SUS.

Um programa de extensão universitária do tipo social-acadêmico, voltado à saúde da população negra, poderia ter como objetivo principal adquirir e produzir conhecimento sobre a saúde da população negra, oferecendo, sempre que possível, atenção à saúde, a partir da interação dialógica com membros de diversas comunidades, valendo-se de uma prática em saúde que considere a história de vida, valores, saberes, crenças e desejos das pessoas e coletividades, e de estratégias de sensibilização para o tema, como, por exemplo, aquelas relacionadas à arte, buscando a troca de saberes e experiências entre os diversos atores envolvidos – estudantes, professores e funcionários de diferentes faculdades, institutos e universidades, inclusive de outros países, além de membros de diversas comunidades externas à Universidade. Um processo de fala e escuta qualificadas e compromissadas com a diversidade, combate ao racismo, justiça social e democracia. Acreditamos que interações transformadoras e de mão dupla entre universidade e outros setores da sociedade fomentam a produção de conhecimento e processos de ensino-aprendizagem de maior interesse da sociedade e contribuem para a formação geral, humanista, crítica, reflexiva e ética, com responsabilidade social e compromisso com a defesa da cidadania e da dignidade humana de estudantes de instituições de ensino superior, como preconizado por várias Diretrizes Curriculares Nacionais.

As atividades a serem realizadas devem alinhar-se ao princípio constitucional da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Isso significa que devem abranger ações extensionistas associadas, muitas vezes, a processos de ensino-aprendizagem e de investigação, de preferência com ampla participação dos membros das comunidades externas à universidade, nas diferentes etapas do processo. Buscar, sempre que possível, integrar tais ações aos currículos dos cursos envolvidos no programa, seja dialogando com disciplinas já existentes ou com disciplinas eletivas a serem criadas, de forma a efetivar recomendação do Ministério da Educação nesse sentido. 

A questão da saúde da população negra não se resume à apresentação e evolução singulares de determinadas doenças. Envolve também a maior dificuldade de acesso a ações e serviços de saúde, maior violência – como, por exemplo, na sala de parto -, os efeitos psicológicos do racismo individual, institucional e estrutural nos pacientes e profissionais de saúde negros, e os saberes ancestrais africanos que determinam o processo saúde-adoecimento-cuidado.

O racismo como elemento estruturante da nossa sociedade não deve ser normalizado e constitui determinante social de saúde relevante. Extensionistas e membros da comunidade podem ter acesso a textos, científicos ou não, que testemunham e reafirmam sua presença no cotidiano da maioria da população brasileira.                  

Carolina Maria de Jesus, no seu “Diário de Bitita”, mediante o relato de uma sequência de episódios de sua vida, nos brinda um panorama real da vida de uma mulher negra e pobre.

No ano de 1925, as escolas admitiam as alunas negras. Mas, quando as alunas negras voltavam das escolas, estavam chorando. Dizendo que não queriam voltar à escola porque os brancos falavam que os negros eram fedidos. (JESUS, 1986)

Passados cem anos, a história se repete, ou melhor, continua, pois nunca foi interrompida, conforme atesta trecho da triste crônica realista escrita recentemente por um dos docentes extensionistas:

Um dia, chegou em casa chorando porque os colegas lhe chamaram de neguinha feia, do cabelo duro. Passou a achar que seu cabelo é feio mesmo.

Tão nova, com uma pesada bagagem de violência e medos. Tão poucos anos de vida e já enfrentando atitudes racistas e preconceituosas dentro da escola.

Como será que a escola vai lidar com as atitudes dos colegas? Dá pra suspender algumas aulas de matemática, português, ciências ou outra para ensinar às crianças sobre racismo e violência de gênero? Ou não, já que o problema é somente dela?

Hoje, busca-se compreender essa história pelo conceito da interseccionalidade.

São inúmeras as formas de violência racial impregnadas indelevelmente na população negra do país, denunciadas de diferentes formas, mas nem sempre reconhecidas por uma sociedade que, em muitos aspectos, permanece cega e indiferente a elas.

Em 2019, a Unicamp deu início ao processo de ingresso de estudantes pretos e pardos pelo sistema de cotas aprovado dois anos antes. O que se viu, nos seis anos seguintes, foi uma maior diversidade étnico-racial e cultural na instituição, contribuindo substancialmente para a obtenção de profissionais melhor preparados para os desafios de uma estrutura social injusta.

A presença mais numerosa de estudantes negros nas faculdades e institutos colocou luz sobre questões racistas presentes também na Universidade e desencadeou a formação de coletivos organizados e atividades destinadas a discutir esse tema.

Um programa de extensão universitária dirigido à saúde da população negra deve englobar projetos que visem ensinar, pesquisar e dialogar sobre questões relacionadas a pelo menos três eixos estruturantes:

1- Estudo e cuidado da saúde da população negra, tanto do ponto de vista da clínica individual como da saúde coletiva, considerando as singularidades da apresentação de determinadas doenças nesse grupo populacional;

2- Estudo e cuidado da saúde da população negra, considerando os efeitos do racismo na saúde física e psíquica de pacientes, comunidades e profissionais de saúde;

3- O lugar dos saberes ancestrais africanos no cuidado da saúde da população.

Espera-se com isso que os profissionais de saúde formados na Unicamp não apenas conheçam as singularidades das doenças e agravos nas pessoas negras, mas que sejam capazes de exercer uma prática realmente condizente com a condição física  psíquica e social do paciente negro.


Referências bibliográficas:

Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, Senado Federal, 1988.

Brasil. MEC. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. Resolução n. 3, de 20 de junho de 2014. Brasília, Ministério da Educação, 2014.

Brasil. MEC/CNE/CES. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução n. 7, de 18 de dezembro de 2018. Brasília, Ministério da Educação, 2018.

Forproex. Fórum de Pró-Reitores das Instituições Públicas de Educação Superior Brasileiras. Política Nacional de Extensão Universitária. Manaus, UFSC, maio de 2012.

Jesus, Carolina Maria de. Diário de Bitita.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

06 maio 25

Fracasso anunciado

Tem histórias que são sofridas de contar porque as lembranças que evocam podem ser dolorosas.
Menina com vestido vermelho de bolinhas brancas e estampa de personagem infantil sentada ao ar livre em uma pequena carteira escolar, próxima a uma árvore, concentrada em um livro ilustrado. Ao fundo, outras pessoas estão reunidas ao lado de um carro vermelho com o porta-malas aberto, em uma área com chão de terra e barracos construídos com madeira e telhas metálicas.
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